A essa altura

João Sabali*

É o uivo de um cordeiro,

Que se fingiu de morto pra ficar sozinho com o coveiro

  • Yank

Ainda me recupero da surra que eu levei na serra: descendo a pé, o corrimão vem e me quebra, eu me solto e num salto ganho a atmosfera. Uma fera voadora vem e me fere, mas não é nada sério e talvez tenha sido até um carinho e acho que hoje deve ser algum tipo de feriado, a estrada tomada de pontos prateados parados e cada vez mais e mais distantes. Mas que o ar daqui é gelado, mas que a vista é como se fosse a de um imenso precipício acolchoado de uma multidão espremida mas harmoniosa de verdes, mas que eu não meço nem metade da asa esquerda dessas feras voadoras que sobem e descem enquanto eu fico parado pra não dizer paralisado, tudo isso vocês já devem ter imaginado a essa altura. A essa altura eu aperto os olhos e vejo um ponto prateado não na estrada, mas na meiuca da serra e imagino que seja o meu corrimão partido refletindo a luz do sol. Uma das feras vem e me espreita e ao mesmo tempo me espera e isso me demonstra como a situação não podia também se resumir a meras contemplações desprovidas de utilidade, devaneios bonitos mas improdutivos, então a fera vem e murmura em meu ouvido ‘Sem essa, vanessa: dia de espera é dia de espera.’ E depois ‘Dia de primeira aula, cheiro de lápis de cor, cheiro de giz de cera.’ E depois nada. Saiu voando assim, com aquelas asonas que fazem barulho quando batem e junto com ela foram as outras feras, no sentido oposto ao da serra, em direção ao mar em uma formação espalhafatosa mas de estilo. Tão imponente quanto você puder imaginar.

*João Sabali é jornalista e escritor de São Paulo (SP).

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