A Coluna do Castello na festa dos oitenta anos do poeta maior
Carlos Castello Branco
Brasília – Impossível ficar à margem da festa nacional em que se transformou a comemoração dos oitenta anos de Carlos Drummond de Andrade. Todos estão presentes. Por que não o estará um repórter incumbido de contar e analisar coisas da política?
O poeta teve no jornal sua primeira profissão e é no jornal que, com assiduidade e aplicação, transita ainda nesta altura dos oitenta anos, revelando o mesmo interesse e a mesma curiosidade pelo quotidiano do mundo e do país. Nada escapa ao seu universo e ele está presente a todos os acontecimentos, que comenta com ironia, piedade e aquela medida poética dos seus versos e da sua prosa.
Falta-me competência para falar do poeta e sequer tive o privilégio de uma convivência tão cara aos seus amigos. Mas circunstancialmente nossas vidas se cruzaram nem sempre de modo adequado.
Vivi na Belo Horizonte drummondiana, quase vinte anos depois dele, mas ainda a cidade da mesma dimensão humana que produziu a mais importante geração de escritores mineiros desde os tempos da Inconfidência. A Belo Horizonte, agora revivida por Otto Lara Resende na sua atmosfera, na qual a presença do poeta ausente era uma nota dominante, misteriosa e excitante.
Ainda tive o privilégio de ler nas primeiras edições de Alguma Poesia, Brejo das Almas e Sentimento do Mundo, numa época em que o imenso poeta era ainda um poeta para uso de um pequeno grupo de pessoas que tiveram condições de percebê-lo e entende-lo antes que ele se tornasse o poeta nacional que hoje ele é, penetrando na intimidade de todos os brasileiros.
Naquela Belo Horizonte do fim da década de 30 e da meia década de 40 convivi com seus companheiros de geração, Milton Campos, Emílio Moura, Ciro dos Anjos, João Alphonsus, e por toda parte ouvíamos algo sobre sua vida e sua maneira de ser.
Mas nem tudo foi compreensão e empatia entre o jovem repórter e o poeta que amadurecia para o país. Uma certa implicância e uma certa malignidade inspiraram a dois jovens tocados pelo mundo encantado da literatura a escrever a quatro mãos um artigo de rejeição à primeira coletânea de crônicas do poeta.
Isso iria provocar certo constrangimento que marcou nossas relações, depois agravada por episódio puramente jornalístico. No II Congresso Brasileiro de Escritores, realizado em Belo Horizonte se não me engano em 1946, Drummond fez objeções ao projeto de declaração que deveria encerrar a reunião. Por toda uma noite o poeta resistiu ao assédio dos que pretendiam dele a transigência com expressões por ele rejeitadas, já não me lembro sobre que versavam.
Descrevi o episódio numa reportagem para o suplemento literário de O Jornal. E ao contar a resistência de Drummond, disse literalmente: “O poeta empacou”. Para surpresa minha, dias depois recebi uma carta do Drummond repelindo a expressão, que o irritara pois o verbo empacar costuma ser usado em outro contexto.
Respondi-lhe de boa-fé que jamais imaginara magoá-lo, ao definir seu comportamento. Infelizmente, acrescentei, você empacou e infelizmente o ato de empacar é tradicional atributo do burro. Foi mais ou menos assim. Não tenho arquivos nem memória muito viva.
Mas nossas relações, mal começadas, ficaram por aí. Voltei a vê-lo em outras circunstâncias. Lembro-me de um aniversário de Manuel Bandeira, com quem ele conversava quando fui abraçar o poeta.
Hesitei em cumprimentar Drummond, Bandeira percebeu e achou muito divertido que nós não nos déssemos. Trocamos um aperto de mão. Depois disso, encontros rápidos em elevador com algumas expressões amáveis.
Mas num momento difícil de minha vida fui confortado por uma longa e carinhosa carta do poeta. A emoção que me envolvia na época não me permitiu responder à carta, mas ela gerou uma corrente afetiva que cultivo à distância e que completa, na medida humana, a admiração e a gratidão do leitor do maior poeta brasileiro.
Creio que não deve ser fácil trabalhar rotineiramente como cronista de jornal aos oitenta anos de idade, por maior que seja o vigor físico da pessoa. Drummond o faz, com aquele mesmo senso de responsabilidade e com a mesma pontualidade do profissional que na juventude cozinhava jornais em Minas Gerais.
Para nós jornalistas esse é um comportamento exemplar e estimulante e espero enquanto tiver forças fazer o meu trabalho com o mesmo rigor com que o faz o poeta e com o mesmo ânimo que o leva a ler tudo e a saber tudo o que se passa no país e no mundo.
Ele tem como jornalista o supremo dom de atualidade, de estar sempre no contexto da realidade. Nada lhe escapa como observador e nenhum assunto é menor para esse cronista maior.
Se para os poetas do Brasil inteiro, Carlos Drummond é o mestre, ele o é também para nós jornalistas, seus humildes colegas de uma profissão que não se exerce bem sem humildade.
[Jornal do Brasil (Rio), 2/11/1982]
Coisa curiosa a redação do JB e o telefone vermelho. Belza pura, Carlos Cruz!