A Bolsa & a Vida: Capítulo do Genesis

Arte: Boureima Nabaloum (1985-), de Burquina Faso

Carlos Drummond de Andrade

  1. E o senhor, vendo que os homens não melhoravam, antes se tornavam piores, decidiu mandar-lhes uma chuva de advertência; e com isso lhes manifestava seu enfado, e que outro dilúvio não estaria fora de suas cogitações.
  2. E a chuva começou a cair, a princípio alegre com seu destino de chuva; insistente, depois, e zangada, fazendo aluir a morada dos homens.
  3. E os caminhos se encheram de lama, e na lama passavam cadáveres de criancinhas com suas bonecas; e também boiavam corpos de velhos e de moços na eflorescência do amor.
  4. E as águas cumpriram seu serviço e se retiraram ao cabo de um dia; e quedou sobre a Terra uma dor feita de mil dores.
  5. Nisso vieram os sábios da cidade e puseram-se a fazer a exegese da catástrofe; e concluíram que todo mal provinha de certas povoações altaneiras, desligadas do corpo social, e a que se dava o nome de favelas.
  6. As quais, dependuradas na crista e no declive dos morros, vertiam sobre a cidade, com algumas notas de música, seus detritos e sua miséria, travando o escoamento das águas.
  7. E individualmente se chamavam Querosene, Escondidinho, Pasmado, Martelo, Pretos Forros, Cabrito, Vintém, Cantagalo, Curral das Éguas, Nheco, Borel, Esqueleto, Catacumba e apelativos que tais.
  8. E mereciam ser destruídos; pelo que se escolheu a Favela da Catacumba, de nome exemplar, para ser arrasada primeiro que as outras, e das outras a hora soaria a seu tempo.
  9. E milicianos, na calada da noite, subiram até lá e arrasaram-na, ateando fogo aos escombros; e os sábios se persuadiram de que haviam acabado com a causa primeira da enchente.
  10. Embora não houvessem acabado com a causa maior das favelas; e os favelados foram recolhidos a uma casa de boa-vontade, enquanto seus pertences tomavam o rumo de uma praça de jogos, Maracanã chamada.
  11. E havendo entre esses alguns tamboretes e cadeiras, bem podiam ser aproveitados para assento de amadores das grandes justas de atletas, que eram a glória da cidade.
  12. E reinou sobre o morro um silêncio catacumbal, que nem a voz de um papagaio bicava.
  13. E seus antigos moradores, depois de alguns dias na casa de asilo, subiram a outro morro virgem e lá plantaram seus fogos e entoam sua música.
  14. E outra vez choverá o aborrecimento de Deus, e eles serão responsabilizados, expulsos, apartados de seus bens, e descobrirão novos terrenos de cume, de onde voltarão a ser tangidos.
  15. E milicianos em número crescente desalojarão ainda mais numerosos catacumbeiros.
  16. A menos que o Senhor, em sua ira, se lembre de consumar a ameaça e promova a magna chuva final.
  17. Da qual ninguém escapará; e depois dessa ninguém será acusado e molestado por ninguém.
  18. Ou a menos que, a poder de palavras e sutis manobras, os sábios consigam desviar a atenção do Senhor para outros mundos ainda mais errados que este.

[O Dia (RJ), 6/9/1959. Hemeroteca BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]

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1 Comentário

  1. Prezado,

    Muito boa a crônica de Carlos Drummond de Andrade e oportuna a republicação na Vila de Utopia, frente às enchentes que arrasaram o Rio Grande do Sul e, pelo visto irão se repetir em São Paulo pela imprevidência e especulação imobiliária que ocupa as várzeas do Rio Tietê geradas pelas enchentes históricas.
    O Homem afeta todos espaços e mexe com fogo na terra, ar, águas e está ficando sem ele. Cava a própria sepultura quando não deixa que os mortos enterrem seus mortos.
    É o começo do fim!

    Abraço,
    Aleixo Caetano de Moraes
    São Paulo – SP

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