Boa vontade

Barba Azul*

No Rio, organiza-se a campanha da boa vontade. Por meio de cartazes coloridos e alegres, o carioca é convidado a considerar todas as coisas com otimismo, verificar com bonhomia todos os assassinatos. Um homem caiu do bonde? Podia ter caído do Corcovado, ou do último andar do edifício de “A Noite” – e felizmente perdeu só uma perna. Como a vida é boa! O carioca segue contente e esbarra com um credor, um desses velhos, velhos credores que nos acompanham carinhosamente a vida inteira. Vai aborrecer-se, mas lá está o cartaz: “Conserve o seu sorriso e pagará as suas dívidas”. Diante desse cartaz, ou desse conselho, o credor fica sendo uma suavíssima criatura, a quem se convida para um aperitivo e a quem se chama atenção “para aquela ótima de vestido verde, ali, em frente àquela casa”.

Sorria sempre, leitor. Sorria para a direita e para a esquerda, para o “chauffeur” que pretende atropelá-lo e para a moça que tenta colocar-lhe à lapela uma flor de manacá em benefício das criancinhas pobres da Rússia meridional. Sorria para a sua sogra! Sorria para os primos desses primos, que tão gentilmente o visitam nas horas em que você pretende sair! Um sorriso é meia digestão feita. Sorria também para o preço da libra esterlina, para a gripe fatal neste mês de junho, e sobretudo, sorria para esse homem que insistentemente lhe oferece um bilhete da loteria de Santa Catarina, o último bilhete de sorte, a sorte o está perseguindo, freguês…

Mas comece a sorrir desde manhã cedo, quando o café estiver frio na xícara e, a um gesto menos prudente da sua mão, ele compuser uma linda mancha amarela no tecido delicado de seu robe de chambre. Gratifique a criada com um sorriso amplo e generoso, e guarde o outro para o chinês de olhos apertados, que tocará dez vezes a campainha para propor-lhe a aquisição de alguns abajours de papel crepon.

Depois, sempre com método, procure achar graça nas crianças do seu vizinho, que praticam o futebol diante do seu jardim, ou, mais propriamente, diante das vidraças, espelhos e demais coisas quebráveis de sua casa. Divirta-se com os companheiros de bonde, tão engraçados! principalmente essa senhora de amplo diâmetro, que quer expulsá-lo do banco porque o banco não comporta a sua magreza. O condutor talvez lhe dê o troco em níqueis do Império, muitos níqueis, ou talvez mesmo se esqueça de lhe dar qualquer troco; vingue-se com um sorriso de fraternidade.

Na repartição, não sorria para os datilógrafos, o que não exige nenhum esforço, sorria para os amanuenses, os primeiros oficiais. Comece a achar o chefe da seção um homem doce e ameno. Ria, ria com os processos, embriague-se com as reclamações, ache uma delícia o livro de ponto. E na volta, em casa, quando sua família estiver dormindo e não houver mais nenhum motivo para sorrir, porque todas as coisas boas do mundo foram suspensas por algumas horas para reparação,  – procure a melhor corda, a mais resistente, e enforque-se com uma gargalhada.

*Barba Azul é pseudônimo de Carlos Drummond de Andrade

Crônica publicada em 12 de julho de 1931 no Minas Gerais

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