Ser patinho feio ou belo cisne: eis a questão

Ilustração: Vilhelm-Pedersen/
Reprodução

Francisco Neto Pereira Pinto*

Penso mesmo que todo mundo deveria ler o conto infantil O patinho feio, de Hans Christian Andersen.

Embora publicado há quase 200 anos, ele permanece atual ao provocar reflexões sobre como nos tornamos humanos — ou seja, como nossa identidade é construída nas e a partir das relações que estabelecemos com aqueles que nos são mais próximos, como família e vizinhança, e com a sociedade em geral.

Neste artigo, discutimos a trajetória de transformação do chamado patinho feio em um belo cisne, e o que podemos aprender sobre como estamos formando as novas gerações.

A jornada do patinho feio e a transformação de sua identidade

O patinho feio era o sexto da sua geração de irmãos. Os cinco primeiros filhotes foram saudados pela mamãe pata e pela vizinhança como lindos patinhos, mas o sexto foi considerado feio, horrível, estranho e, até mesmo — como disse uma pata velha — filho de peru, o que o tornava ilegítimo.

O patinho resolveu fugir daquele convívio e iniciar uma jornada mundo afora, marcada por rejeição e sofrimento.

Um ponto de virada em sua história ocorreu quando, em um belo dia de primavera, ao pousar em um lago, foi recebido de maneira afetuosa e reverente por três belíssimos cisnes mais velhos.

Ao se olhar no espelho da água, não viu mais um pato feio e desajeitado, mas sim um belo cisne. O que teria mudado: foi ele ou foi seu modo de se enxergar? O que aprendemos com sua experiência?

A gente se enxerga com os olhos dos outros

Ao final da leitura do conto, percebemos que o patinho sempre foi ele mesmo — claro que se desenvolveu fisicamente, mas não houve uma transformação de espécie.

O fato de se achar feio estava relacionado à forma como era visto por sua família, vizinhança e por todos que encontrou em seu caminho.

Se tivesse sido amado e admirado desde o nascimento, certamente a imagem que tinha de si seria outra.

O estádio do espelho e a formação da identidade

Essa é a jornada de todos nós. Ninguém escapa de se olhar pelo olhar dos outros.

Jacques Lacan, psicanalista francês, em seu famoso texto O estádio do espelho como formador da função do eu, explica como nos tornamos humanos: é a relação que temos inicialmente com nossos cuidadores e, depois, com outras pessoas e com a sociedade, que estrutura nossa identidade e a forma como nos enxergamos.

Antes mesmo de nascer, parte de nossa existência já é antecipada: “é menino ou menina”, diz o médico ao mostrar a tela do ultrassom, ou os próprios pais ao interpretar o exame de sexagem fetal. Ao nascer, o bebê recebe um nome, com o qual depois irá se identificar.

Como explica o psicanalista Jorge Forbes, ninguém escolhe o próprio nome. Porém, assume esse nome como representante de si. Imagine uma sala de aula, quando o professor faz a chamada.

Ao ouvir seu nome, a pessoa responde: “sou eu”. Isso mostra como aquilo que recebemos dos outros — especialmente das pessoas mais importantes para nós — influencia profundamente a percepção que temos de nós mesmos.

Aprendemos a nos amar e apreciar quando somos amados e apreciados. Quando recebemos desprezo e ódio, infelizmente, a tendência é nos desprezarmos e nos odiarmos.

Felizmente, o patinho encontrou quem o admirasse, e esse encontro foi determinante para que seu olhar sobre si também se transformasse. Pela primeira vez, ele se sentiu bonito — e ficou radiante de alegria.

O que os espelhos estão mostrando?

O patinho feio nos representa hoje: como indivíduos e como coletividade. Para pais e cuidadores, em uma sociedade competitiva, de alto desempenho, que cultua a perfeição e a felicidade como valores supremos, uma pergunta é essencial: o que as crianças que cuido veem no espelho?

Amor nunca é demais — embora, é claro, isso não signifique atiçar orgulho ou vaidade. E o que mostra o grande espelho da cultura, do qual ninguém escapa? Como ficam as representações das pessoas com deficiência, negras, indígenas, pobres, do campo e tantas outras enquadradas historicamente como indesejáveis?

Ser um patinho feio ou um belo cisne não depende apenas de boa vontade ou esforço pessoal, mas também das construções coletivas. Que o conto O patinho feio continue ajudando a nós e às gerações futuras a construir espelhos mais gentis e acolhedores.

*Francisco Neto Pereira Pinto é professor universitário e psicanalista, além de escritor de obras infantis como O menino que selecionava sabores e Olha aquele menino, mamãe!. Marido e pai de dois meninos, ele utiliza a literatura para contribuir para a criação dos filhos e de exercitar a paternidade.

 

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