Flitabira promove mesa sobre justiça, violência de gênero e protagonismo das mulheres negras
Na mesa, a jornalista Ana Paula Araújo, a promotora de justiça Lívia Sant’Anna Vaz e a jornalista e escritora Miriam Leitão
Fotos: Carlos Cruz
Com e relatos históricos, debate mediado por Miriam Leitão reforça o papel da literatura como instrumento de denúncia e reparação
Na noite desse sábado (1), o 5º Festival Literário Internacional de Itabira (Flitabira) promoveu uma das mesas mais densas e mobilizadoras de sua programação, tendo como tema “A literatura na trilha da justiça: a violência contra mulheres e a condição da mulher negra”.
Com mediação da jornalista e escritora Miriam Leitão, a mesa reuniu a jornalista Ana Paula Araújo e a promotora de justiça Lívia Sant’Anna Vaz, em um colóquio marcado por escuta sensível, relatos contundentes e reflexões sobre os mecanismos que perpetuam a violência de gênero e o racismo estrutural no Brasil.
Miriam abriu a conversa com um aviso direto. “Essa é uma mesa feminista. Essa é uma mesa que defende mulher.”
Declarando-se uma “velha feminista”, ela celebrou a força das novas gerações e reconheceu o aprendizado que sua geração teve com o feminismo negro.
“Demorou para minha geração ouvir. Mas quando a conversa chega, a gente para. É o cruzamento das duas dores: ser discriminada por ser mulher e por ser negra.”
A escalada da violência e o julgamento das vítimas
Ana Paula Araújo, autora de Agressão – A escalada da violência doméstica no Brasil, compartilhou relatos de mulheres que enfrentam múltiplas formas de violência física, psicológica, patrimonial. E alertou para o ciclo cruel que aprisiona vítimas em relações abusivas.
“A mulher é criada para manter a família, para se sacrificar. Ela acredita que é seu papel mudar aquele homem. E aí começa o ciclo da lua de mel, da agressão seguida de desculpas, que se repete e se agrava.”
Ela destacou o caso de Tainá, jovem de Barretos que sobreviveu a uma tentativa de feminicídio após rejeitar um relacionamento abusivo.
“Ela disse não desde o início. E ainda assim, foi vítima de uma violência extrema. Isso desmonta o mito de que a mulher permite ou provoca a agressão.”
Ana Paula também alertou para o julgamento social que recai sobre as vítimas: “A mulher hesita em pedir ajuda porque tem vergonha. Mas quem tem que ter vergonha é o agressor.”

Justiça como caminho e memória como resistência
Lívia Sant’Anna Vaz, promotora de justiça e autora de Cotas Raciais, trouxe à mesa a interseccionalidade como chave para compreender a condição da mulher negra. “Somos o maior segmento social do Brasil, 28% da população, mas não chegamos a 6% dos cargos no sistema de justiça, nem a 3% na Câmara dos Deputados ou em posições de liderança nas empresas.”
Ela denunciou o apagamento histórico das famílias negras, que partem do zero, sem herança, e enfrentam barreiras estruturais para ascender socialmente. “A nossa democracia é um espelho quebrado, no qual se sobrepõe apenas a imagem de homens brancos no poder.”
Lívia relembrou figuras históricas como Liberata, mulher negra escravizada que conquistou sua liberdade por meio da justiça após denunciar abusos sofridos desde os 10 anos.
Lembrou também de Esperança Garcia, reconhecida pela OAB como a primeira advogada do Brasil, que escreveu uma petição ao governador do Piauí em 1770 pedindo o direito de viver com sua família e batizar seus filhos.
“Essas mulheres negras foram fundamentais para a construção da justiça brasileira”, afirmou.
A religiosidade como reconstrução de identidade
Outro ponto abordado foi a perseguição histórica às religiões de matriz africana, ainda hoje alvo de preconceito.
Lívia defendeu que essas expressões de fé sejam reconhecidas como patrimônio material do Brasil. “Os terreiros foram espaços de reconstrução familiar e comunitária. A bênção, na cultura afro-brasileira, é uma troca de reconhecimento pela humanidade.”
Ela lembrou que, mesmo após a separação entre Estado e Igreja, leis estaduais exigiam o registro de terreiros em delegacias, como ocorreu na Bahia e na Paraíba. “A religião de matriz africana foi uma possibilidade de reconstruir o sentido de família para os povos negros, diante da separação forçada e da perseguição à sua identidade.”
Literatura como denúncia e esperança
A mesa reafirmou o papel do Flitabira como espaço de escuta, denúncia e esperança.
Mais do que um festival literário, o evento movimenta a cidade com oficinas, atividades infantis, sessões de autógrafos e mesas que abordam temas urgentes e contemporâneos, da justiça social à preservação ambiental, da memória à resistência.
Em tempos marcados pelo avanço de forças obscurantistas e negacionistas — como o massacre no Rio de Janeiro, citado em outras mesas — o Flitabira se consolida como um território de diálogo, memória e compromisso com o futuro da humanidade.
Ao reunir vozes reconhecidas nacionalmente, como Ana Paula Araújo, Lívia Sant’Anna Vaz e Miriam Leitão, entre tantos outros convidados e homenageados, o Flitabira reafirma sua relevância no calendário cultural brasileiro.
O festival se encerra neste domingo (2), com programação gratuita e aberta ao público. A agenda completa está disponível em www.flitabira.com.br.









