O poeta Carlos, sempre eterno, doce e moderno

Fachada da Biblioteca Nacional-Rio

Foto: Marcos Gusmão/
Reprodução

Por Cláudio Lysias 

Um dia eu o vi na Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro. Parecia andar sem rumo definido. Fazia-o bem. Olhava a Biblioteca Nacional como quem olha um velho (a) amigo (a). O poeta andava sem rumo definido.

Parou em um sinal, como qualquer mortal, e nesse momento pareceu o mais mortal de todos aqueles cidadãos que, naquela quinta-feira de calor imortal no Rio de Janeiro, esperavam entre irritados e pacientes (eis uma mistura que só pode ocorrer numa tarde bela e cariocamente iluminada) um sinal de abrir. Não repararam que ali, a seu lado, estava o mais completo sinal de abrir do Rio e do Brasil: o poeta Carlos Drummond de Andrade.

De repente, sinal aberto, acionado sem a influência do filho de Itabira, o poeta que repensou o modernismo, colocando-o na ordem do dia das coisas que consideram o dia-a-dia como parentes do eterno, e que ao mesmo tempo é magnificamente fugidio, de repente, o poeta maior deste país deu uma corridinha para alcançar um prosaico “Castelo-Ipanema” que passava.

Cadeira n. 4 da Biblioteca Nacional-Rio, a preferida do poeta Drummond

O “Castelo-Ipanema” era um glorioso lotação daqueles mais velozes que faziam da velha capital um formidável autódromo.

Devo confessar que no dia, como o sou até hoje, não passava de um estudante incompetente que não ousou aproximar-se do amigo de Charles, “homem do povo”, Chaplin, daquele que escreveu “A Flor e a Náusea”, que nos emocionou com “O Elefante” e que arrematou com “A Mesa”, um poema que nos desvendou e apresentou todos os mistérios das Minas Gerais.

Ainda bem que não alcancei ou ousei aproximar-me do poeta. Ele não gosta de estudantes e muito menos de admiradores. E tem todas as razões possíveis e impossíveis. Conquistou-as.

Drummond, além, da poesia anda retomando com especial carinho o jornalismo. São dele parte das melhores observações feitas ultimamente sobre o Brasil e o mundo. Devo confessar que é muito difícil falar deste homem que, ao dedicar-se à poesia e a literatura, conseguiu elevar-se à poesia e a literatura, conseguiu elevar-se como homem a um nível inacreditável.

Como várias pessoas, inúmeras pessoas,  emociono-me profundamente ao lê-lo, seja na poesia ou na crônica de jornal. E me sinto absolutamente honrado em poder ser seu companheiro de profissão, eventual mas sincero. Drummond é o poeta, o jornalista, que bate a hora histórica. E abate como quem vende um honesto pão a seu semelhante.

O poeta maior faz anos em outubro. Dia 31. Oitenta anos. O movimento modernista está fazendo 60. Os modernistas têm em Drummond, ao mesmo tempo, sua rebeldia e sua face rigorosa, seu amor, paixão, fria-quente das montanhas de ferro de Itabira, e sua absoluta concretude poética. E o Brasil tem em Carlos Drummond de Andrade uma das pessoas mais importantes de sua história.

Arte: Clores Lage, prima de Drummond

Que as comemorações da Semana Modernista, que até agora não souberam sequer avaliar a valiosa e riquíssima colaboração de todos os erros de Oswald de Andrade, que largou em um cofre aberto, mas impermeável à ignorância reinante, os frutos mais puros de ideias rebeldes e ricas, saibam ao menos homenagear Carlos Drummond de Andrade.

Lembrem-se, ao menos, que convidado a entrar para Academia Brasileira de Letras, Drummond dirigiu-se ao primeiro cemitério e comprou um túmulo. Não por desrespeito à Academia, mas por respeito às suas convicções. A poesia nunca o largou. E nem ele quis abandoná-la.

Permitam-me, por fim, transcrever um pedaço de crônica publicado por Drummond no sábado anterior ao carnaval. Me parece uma prova irrefutável e maior de que o poeta continua atento à cultura de seu tempo e a seus anseios e desejos profundos. O texto chama-se “A Máscara”. Ei-lo, na integra:

Tai, gostei de ver as máscaras de carnaval expostas à venda, mais uma vez, nas bancas de jornaleiros. Elas são talvez o último traço cultural restante da antiga folia carnavalesca. Até essa palavra folia, tão gostosa, sugerindo loucura assumida e inocente, sumiu de todo. Ficaram as máscaras. Poucos foliões, perdão, poucos carnavalescos se dispõem a usá-las, mas há sempre um garoto ou uma garota, neto (a) da gente que se encanta em sair mascarado (a). Isso é bom. E não é por nostalgia de velho que acho isso bom. É porque dá esperança de, quando essa garotada crescer, o carnaval  individualizar-se mais, sem perder o caráter de divertimento de massa. Porque o carnaval programado, oficializado, administrado, turistizado, façam-me o favor. A máscara é o símbolo mais puro do carnaval. Assinala a mudança de identidade, comportamento, disposição de espirito, passagem do estado de rotina para estado de alegria. A máscara, no fundo, é muito mais autentica do que o rosto formal.

[Correio Brasiliense (DF), 1 de março de 1982. Pesquisa na BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]

 

 

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