Fux inocenta Bolsonaro e distorce realidade ao negar golpe abortado por recusa do Exército e da Aeronáutica
Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil
Nesta quinta-feira histórica, Cármen Lúcia deve formar maioria pela condenação. Voto ambíguo de Fux ignora a lógica jurídica, expõe interesses pessoais e mancha o legado de quem foi indicado por Dilma Rousseff
Valdecir Diniz Oliveira*
O Brasil vive hoje um momento histórico para a democracia. Nesta quinta-feira, 11 de setembro de 2025, data também marcada por viradas históricas no Chile e nos Estados Unidos, o Supremo Tribunal Federal se prepara para dar prosseguimento ao julgamento que pode condenar Jair Bolsonaro e seus principais aliados por tentativa de golpe de Estado e formação de organização criminosa.
A coincidência não é trivial. Em 11 de setembro de 1973, o Chile viu ruir sua democracia com o golpe militar liderado por Augusto Pinochet, que derrubou o presidente eleito Salvador Allende, instaurando uma ditadura brutal que duraria 17 anos. O golpe chileno, apoiado pelos Estados Unidos e pela CIA, tornou-se símbolo da repressão na América Latina e da fragilidade das instituições diante da força armada.
Quase três décadas depois, em 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos foram atingidos pelos atentados terroristas que derrubaram as Torres Gêmeas em Nova York, matando cerca de 3 mil pessoas e inaugurando uma nova era de vigilância, guerras externas e endurecimento das políticas de segurança global.
Agora, em 2025, o Brasil inscreve seu próprio capítulo nessa data carregada de memória e significado. O julgamento no STF, com o voto que virá certamente condenatório da ministra Cármem Lúcia, não apenas busca responsabilizar os autores de uma tentativa de golpe, como também representa a reafirmação da democracia diante de forças que tentaram subvertê-la por dentro.
É como se o país, ao escolher este dia para decidir o destino de Bolsonaro e seus cúmplices, estivesse dialogando com a história continental e global, dizendo: “aqui, a democracia resiste”. A sessão da Primeira Turma nesta quinta-feira, adiada para às 14h após o longo voto do ministro Luiz Fux, será marcada pela apresentação do voto da ministra Cármen Lúcia, que deve consolidar a maioria pela condenação.
As contradições do voto de Fux
O voto do ministro Luiz Fux, proferido com extensa retórica e aparente esforço técnico, escancarou contradições que desafiam não apenas a lógica jurídica, mas também a integridade institucional do Supremo Tribunal Federal.
Ao absolver Jair Bolsonaro e outros seis réus do núcleo central da tentativa de golpe, sob a alegação de que não houve crime de conspiração nem organização criminosa, Fux contraditoriamente condenou Braga Netto e Mauro Cid, dois dos principais operadores da mesma trama.
A incoerência está no próprio voto, não no julgamento como um todo. Fux tenta sustentar uma tese negacionista, negando a existência da engrenagem golpista, ao mesmo tempo em que reconhece parcialmente sua execução. Se não houve organização criminosa, como justificar a condenação de seus supostos integrantes? Se não houve tentativa de golpe, por que punir os que a operacionalizaram?
O ministro constrói um voto que parece buscar equilíbrio entre os mundos jurídico e político – e, de quebra, também agradar ao governo de Donald Trump, aliado declarado de Bolsonaro. Ao livrar o ex-presidente e seu núcleo político, mesmo diante de provas contundentes e da gravidade institucional dos fatos, Fux dá sinais de que está mais preocupado em preservar relações internacionais e blindar interesses pessoais do que em cumprir seu papel constitucional com firmeza.
A dubiedade de sua posição é flagrante. Ao negar os crimes e ainda assim condenar dois dos principais executores, Fux desenha uma narrativa que desafia o bom senso. É como se o crime tivesse ocorrido sem comando, sem plano, sem liderança. É uma tentativa de apagar o cérebro da operação golpista, mantendo apenas os braços visíveis, em uma manobra que enfraquece a responsabilização e busca desmoralizar o próprio tribunal.
Essa ambiguidade levanta suspeitas legítimas sobre motivações pessoais. Fux mantém patrimônio nos Estados Unidos e, ao evitar a condenação de Bolsonaro, parece buscar uma blindagem diplomática contra possíveis sanções ou constrangimentos internacionais.
O gesto se torna ainda mais grave quando se considera que o ministro foi indicado ao STF pela presidenta Dilma Rousseff, uma liderança que sempre se posicionou em defesa da democracia e contra forças autoritárias. Agora, Fux parece proteger justamente essas forças, com um voto ambíguo e politicamente conveniente para ele.
Ao tentar agradar a todos os bolsonaristas e a Trump, Fux desmoraliza os dois campos que deveria honrar: o jurídico, pela incoerência técnica, e o político, pela conivência silenciosa com um projeto golpista. É assim que o seu voto não é apenas uma escolha jurídica, mas é um posicionamento histórico e contraditório, e será lembrado como tal.
Cármen Lúcia e o voto que pode selar o destino de Bolsonaro
A expectativa agora recai sobre a ministra Cármen Lúcia. Seu voto, previsto para esta tarde, deve formar a maioria necessária para a condenação de Bolsonaro e seus cúmplices. E há uma ironia histórica nesse desfecho: será uma mulher, pertencente ao gênero que Bolsonaro tantas vezes atacou com misoginia e desprezo, quem poderá selar o destino jurídico de um presidente que tentou subverter a democracia.
Bolsonaro construiu sua trajetória pública marcada por reiteradas demonstrações de misoginia e desprezo pelas mulheres. Em 2003, ainda deputado federal, protagonizou um dos episódios mais brutais no Congresso Nacional ao dizer à deputada Maria do Rosário (PT-RS): “Não te estupro porque você não merece”, frase que repetiria anos depois, com orgulho, em entrevistas. O ataque não foi apenas pessoal, foi institucional: uma agressão à dignidade feminina dentro da própria Câmara dos Deputados.
Em 2018, atacou a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo, insinuando que ela teria “tentado seduzir” uma fonte para “dar o furo”, buscando obter informações desfavoráveis à sua campanha. A fala, carregada de machismo e desqualificação profissional, foi amplamente condenada por entidades de imprensa e organizações de defesa dos direitos das mulheres.
E há ainda o episódio em que, ao comentar o nascimento de sua filha Laura, Bolsonaro declarou publicamente: “Foi uma fraquejada”, como se ter uma filha fosse um erro ou uma concessão indesejada. A frase, dita com naturalidade, escancarou sua visão distorcida sobre gênero e paternidade.
Mas talvez o momento mais simbólico de sua misoginia institucionalizada tenha ocorrido em 17 de abril de 2016, durante a votação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Ao declarar seu voto favorável à abertura do processo, Bolsonaro fez questão de homenagear o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, reconhecido pela Justiça como torturador e responsável por sessões de extrema crueldade contra presos políticos durante a ditadura militar, entre eles, a própria Dilma.
Na ocaisão, Bolsonaro exaltou Ustra como “o pavor de Dilma Rousseff”. E dedicou seu voto à memória do militar, ignorando deliberadamente o fato de que ele foi responsável por torturas que incluíam choques elétricos, espancamentos, estupros e práticas sádicas como a introdução de ratos e baratas em orifícios dos torturados.
A homenagem a um torturador, feita em rede nacional e diante do Congresso, não foi apenas uma provocação política, mas sim um ato de violência simbólica contra todas as mulheres que resistiram à ditadura, e especialmente contra Dilma Rousseff, que enfrentou sessões de tortura com requintes de crueldade por sua militância política.
Por tudo isso, o voto de Cármen Lúcia, que deve ser firme, técnico e histórico, será mais do que uma decisão jurídica. Será um ato de reparação simbólica, uma resposta institucional à misoginia que Bolsonaro tentou normalizar, e um gesto de justiça diante da memória das mulheres que resistiram, foram silenciadas e agora voltam a falar pela voz da Corte.
Esses episódios não são desvios pontuais. São parte de uma cultura política que despreza o feminino, tenta silenciar vozes dissidentes e vê mulheres como obstáculos, não como protagonistas.
11 de setembro histórico
É assim que este 11 de setembro deixa de ser apenas mais uma data no calendário. Torna-se o dia em que o Brasil olhou para si mesmo, encarou suas feridas e reafirmou o compromisso com a democracia.
Um dia em que as instituições resistiram, e em que a Justiça, por meio de uma mulher que representa tudo o que Bolsonaro tentou deslegitimar, se levantou para condenar o autor de uma tentativa de golpe.
E será também um dia depois de o ministro Luiz Fux ter revelado, com todas as letras, que há quem prefira proteger seus próprios interesses, patrimoniais, políticos ou diplomáticos, a cumprir o papel que a história lhe confiou. Seu voto não foi apenas uma escolha jurídica: foi um gesto de omissão diante da democracia, uma marca que o tempo não apagará.

*Valdecir Diniz Oliveira é cientista político, jornalista e historiador