Brasil Paralelo manipula informações sobre as agressões sofridas por Maria da Penha na tentativa de transformar o agressor em vítima

Conteúdo publicado pelo portal bolsonarista minimiza a violência sofrida e tenta reescrever os fatos em favor do agressor

Foto: José Cruz/
Agência Brasil
Ana Cristina Ribeiro Fraga*

A recente investida da produtora Brasil Paralelo contra a Lei Maria da Penha é mais do que uma afronta à memória de uma mulher sobrevivente: é um sintoma claro da tentativa bolsonarista de blindar seus seguidores contra avanços sociais que confrontam o machismo estrutural.

Ao dar voz ao agressor condenado Marco Antônio Heredia Viveros, ex-marido de Maria da Penha, a produtora não apenas distorce os fatos, mas promove uma perigosa campanha de desinformação que ameaça décadas de luta contra a violência doméstica.

Os fatos que não podem ser apagados

Em 1983, Maria da Penha foi baleada pelas costas enquanto dormia, ficando paraplégica. Meses depois, Heredia tentou eletrocutá-la durante o banho, em um segundo atentado.

Ambos os crimes foram comprovados por perícias médicas, testemunhos e processos judiciais. Heredia foi condenado, mas só cumpriu pena após quase 20 anos de impunidade – um atraso que levou o Brasil a ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por negligência.

A partir desse caso, nasceu a Lei Maria da Penha, sancionada em 2006, considerada uma das mais avançadas do mundo no combate à violência doméstica. Ela não é apenas uma homenagem à vítima, mas uma resposta institucional à omissão histórica do Estado.

A tentativa revisionista bolsonarista

Não é coincidência que figuras bolsonaristas estejam envolvidas em sucessivos episódios de agressão, verbal, simbólica e até física, contra mulheres que se posicionam publicamente. Trata-se de um padrão que revela não apenas misoginia, mas uma tentativa sistemática de silenciar vozes femininas que desafiam o autoritarismo.

Entre os diversos ataques, Vera Magalhães, jornalista e apresentadora do Roda Viva, foi atacada por Jair Bolsonaro durante um debate presidencial em 2022. Ao ser questionado sobre políticas de saúde, ele respondeu com agressividade: “Você é uma vergonha para o jornalismo brasileiro. Acho que você dorme pensando em mim.”

A fala, carregada de insinuação sexual e desprezo profissional, foi amplificada por seus apoiadores, que passaram a exibir faixas com o rosto da jornalista e espalhar ilustrações grotescas. Vera relatou que passou a temer por sua segurança.

Outro caso de misoginia ocorreu com deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), ex-ministra ministra-chefe da Secretaria de Direitos Humanos durante o governo Dilma Rousseff. Ela foi vítima de uma das declarações mais violentas do bolsonarismo.

Em 2014, Bolsonaro afirmou: “Ela não merece [ser estuprada] porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria. Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar, porque não merece”

Essa declaração foi feita em entrevista após uma discussão com a deputada, repetindo uma declaração anterior, ocorrida em 2003 quando o então deputado disse diretamente no plenário da Câmara: “Eu não ia estuprar você porque você não merece.”

A frase, repetida em entrevistas, banaliza o estupro e reforça a ideia de que a violência sexual seria uma espécie de “mérito”. A ação judicial movida pela deputada foi arquivada por prescrição, mas o impacto simbólico permanece.

Em manifestações bolsonaristas, militantes feministas também foram hostilizadas. Mulheres que protestavam contra o governo foram cercadas, xingadas e, em alguns casos, agredidas fisicamente por apoiadores extremistas.

A presença feminina nesses espaços é frequentemente tratada com escárnio. Lideranças bolsonaristas incentivam esse comportamento ao promover discursos que associam o feminismo à “desordem moral”.

Esses episódios não são desvios isolados. São expressões de uma cultura política que naturaliza a violência contra mulheres, especialmente aquelas que ocupam espaços de poder ou opinião.

Reação institucional

A Advocacia-Geral da União (AGU) reagiu com uma ação civil pública contra o site Brasil Paralelo, exigindo reparação por danos morais coletivos e a publicação de conteúdo informativo elaborado pelo Ministério das Mulheres.

A medida é urgente: a disseminação de mentiras sobre um caso tão emblemático da violência contra as mulheres enfraquece a confiança das vítimas na justiça e estimula a impunidade.

Além disso, Maria da Penha passou a receber ameaças de grupos misóginos, o que levou o Governo do Ceará a oferecer proteção oficial e transformar sua casa em memorial contra a violência doméstica.

O que está em disputa

A tentativa de reescrever a história de Maria da Penha é uma forma de reafirmar o poder de uma cultura que sempre silenciou mulheres. Ao atacar a lei, os bolsonaristas não estão apenas defendendo um agressor condenado. O que eles fazem é defender um modelo de sociedade onde a violência contra mulheres é relativizada, negada ou justificada.

É preciso dizer com todas as letras: a misoginia não é opinião, é violência. E a desinformação não é liberdade de expressão, é manipulação.

A Lei Maria da Penha salva vidas e vai continuar salvando. Por mais que tentem apagá-la, distorcê-la ou desacreditá-la, ela resiste. Permanece como marco de justiça, como escudo contra a violência e como símbolo da coragem feminina diante da brutalidade.

A misoginia, em suas diversas formas, da violência física ao discurso de ódio, é crime previsto em lei. A legislação brasileira tem avançado no reconhecimento e na punição dessas condutas, dentro e fora do ambiente doméstico.

Atos motivados exclusivamente pela condição de gênero feminino, como agressões, humilhações ou ameaças, são juridicamente responsabilizáveis. A verdade, por mais incômoda que seja, sempre encontra um caminho para sobreviver. E a história, implacável, atropela todos aqueles que insistem em negá-la.

Foto: acervo pessoal

*Ana Cristina Ribeiro Fraga é escritora bissexta, jornalista e educadora social.

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