Com o fim do rebaixamento de aquífero na mina Cauê, nascentes que secaram voltam a jorrar e invadir residências no bairro Penha

“O menino pensativo junto à água da Penha mira o futuro em que se refletirá na água da Penha este instante imaturo.” – Carlos Drummond de Andrade, Memória Prévia, Boitempo II

Fotos e reportagem: Carlos Cruz

O que era apenas previsão hidrogeológica tornou-se realidade no bairro Penha, em Itabira. Com o fim do rebaixamento do aquífero na exaurida mina Cauê, antigas nascentes que secaram com a mineração voltam a jorrar na grota da Penha. O fenômeno é celebrado por moradores pela revitalização hídrica, ao mesmo tempo em que causa transtornos para os que ocupam há décadas a região.

Na edição de março de 2002 do jornal Vale Notícias, órgão oficial da mineradora que circulou até 2015, o hidrogeólogo Agostinho Fernandes Sobreiro Neto assegurava que, com o fim do bombeamento de água nas cavas das Minas do Meio, as reservas hídricas subterrâneas se recuperariam naturalmente, retornando ao volume anterior ao rebaixamento, tornando-se um “legado” da mineração para a cidade.

Nascente renasce na Penha e mira o futuro sem saber o que virá — se fica ou retorna para as minas

De acordo com Sobreiro, essa água ressurgiria com abundância e qualidade suficiente para abastecer Itabira e atrair indústrias com alta demanda hídrica.

Entretanto, esse “legado” não se concretizou na forma de recursos hídricos de classe especial para a população itabirana, tampouco para atrair indústrias que diversificassem a economia local. Isso porque, com a opção da Vale de dispor rejeitos nas cavas exauridas das Minas do Meio, impediu-se o usufruto desse “legado” pela população itabirana.

Diante disso, a Vale se viu obrigada a assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), firmado com o Ministério Público, para buscar um meio de abastecimento alternativo. Só agora, com mais de duas décadas de atraso, viabiliza-se a transposição de água do rio Tanque para abastecer a cidade — e “atrair novas indústrias”.

Nascentes renascem
Mário e Anselmo Vieira: irmãos tiveram perdas no passado com a secagem das nascentes, que voltam agora como dádiva e ameaça

Mas o que previu o hidrogeólogo da Vale está se concretizando, com antigas nascentes ressurgindo na grota da Penha, por onde se deu, há mais de três séculos, o início do povoamento de Itabira, com os bandeirantes que faiscavam ouro no córrego que descia do Cauê.

Agora, como previsto, com a interrupção do bombeamento de água na cava exaurida da mina Cauê, o aquífero começou a se recuperar com a recarga. Com isso, na grota da Penha, nascentes que haviam desaparecido desde os anos 1990 voltaram a emergir em meio a residências e comércios construídos sobre áreas antes secas.

Nesse caso, a água não brota no vazio de uma cava mineral, até pode ser que também, mas ressurge embaixo de casas, lava-jatos, escorrendo em terrenos ocupados há mais de meio século.

Lagoa ao lado da área de alimentação na chácara de Anselmo: recurso hídrico recuperado e com outorga regularizada

“Toda vida teve água aqui. A fonte secou com a mineração, agora voltou a ter”, conta o morador e empresário Mário Lúcio Vieira, ao lado do irmão Anselmo José Vieira. Eles relatam como a família perdeu o acesso à água em 1992, quando todas as nascentes secaram.

A situação levou à judicialização contra a Vale e à dependência da água fornecida pelo Saae, autarquia municipal responsável pelo abastecimento público na cidade. O comércio de lava-jato, iniciado em 1989, quase foi interrompido completamente.

Mas eis que, em 2015, os sinais do retorno das antigas nascentes começaram a aparecer. Hoje, são ao menos 37 pontos de surgência identificados dentro e nos arredores da grota da Penha, no bairro homônimo.

“A água voltou a escorrer fora do leito canalizado e passou a invadir casas. Algumas sofreram rachaduras e risco de desabamentos, e os moradores foram transferidos para outras residências pela Vale”, relata Anselmo Vieira.

Residência interditada devido à ressurgência e infiltração de água; moradores foram removidos por segurança e realocados em imóvel com aluguel custeado pela Vale
“Água boa demais para se perder”

As águas que retornaram são de qualidade excepcional. Anselmo Vieira, também morador, possui outorga regularizada desde 2016. Ele realiza tratamento básico com filtragem e abastece sua residência, seus peixes, assim como abastece o lava-jato do irmão e outros consumidores que abastecem caminhões-pipa com essa água renascida da mineração exaurida. “A vazão permite a coleta de muitos litros por dia sem ferir os limites legais da outorga para a captação”, conta.

No entanto, em vez de direcionar as nascentes, que retornaram com o fim do rebaixamento do aquífero e correm superficialmente, ameaçando residências e o comércio local, para o canal da Penha por meio de drenagem, a solução encontrada, e já em execução pela Vale, foi retomar o rebaixamento.

“Não podemos, mais uma vez, perder essa água pura e cristalina, de classe especial, que dispensa tratamento”, diz Anselmo Vieira

Para isso, a empresa já perfurou poços artesianos na região entre a estação João Paulo e o estádio do Valério. “Os testes de bombeamento já foram iniciados”, conta Anselmo. “Em pouco tempo, os efeitos já foram sentidos, com queda na vazão das nascentes ressurgidas.”

Com a solução adotada pela Vale, a comunidade corre o risco de ficar novamente sem essas nascentes. Para os moradores que dependem diretamente da água, seja para consumo ou atividade econômica, a retomada do rebaixamento é uma ameaça grave, além de perda de direitos.

Imóvel é impactado pela água que voltou a jorrar e a infiltrar em residência na grota da Penha

Anselmo e Mário temem que, se os novos poços da Vale passarem a bombear continuamente, a água voltará a desaparecer — como já ocorreu há trinta anos. A abundância que voltou a ser realidade será, de novo, uma ausência imposta por decisões técnicas distantes das necessidades de quem vive no território.

Mais do que isso: não há consenso nem negociação clara com os moradores sobre a retomada do bombeamento. Com a decisão, a Vale não reconhece os usos locais das nascentes, mesmo diante das outorgas válidas e do uso anterior perdido há mais de um século pela família Vieira — e que só mais recentemente vinha sendo recuperado.

“Drenar é possível e necessário”, defende Anselmo
Anselmo propõe como solução a drenagem da água que está escorrendo, direcionando-a ao canal da Penha para que siga seu curso natural

A proposta defendida entre os moradores é simples e de fácil realização. Segundo Anselmo, trata-se de construir um sistema de drenagem de cerca de 300 metros de extensão na rua Lúcia Ferreira Vieira, principal eixo atingido pelas nascentes emergentes. “A obra evitaria o alagamento das casas, preservaria a água disponível e direcionaria o recurso ao canal natural do córrego da Penha, que passa pela grota”, ele defende e propõe.

Segundo Vieira, os engenheiros da Vale alegam dificuldade técnica ou inviabilidade. Mas os residentes insistem que a solução não exige alta tecnologia — apenas escuta, disposição para alocar os recursos necessários e, sobretudo, respeito aos usos históricos da água na região.

“O maior bem da Terra não é minério. É água”
Anselmo mostra uma das inúmeras nascentes que voltaram a brotar: um recurso que ele não quer mais perder

A frase de Anselmo sintetiza o conflito: em uma cidade moldada pela mineração, a água tornou-se bem escasso — e, quando ela volta, é considerada dádiva e excesso, por falta de infraestrutura para recebê-la de volta.

A mineradora, ao tentar rebaixar novamente o aquífero, reforça um modelo extrativista que prioriza o controle e a drenagem, e não a convivência com os ciclos naturais.

Algumas famílias já foram removidas do local, enquanto outras estão abertas à negociação. E, se houver necessidade de mais remoções, que seja respeitando todos os seus direitos e pagando preço justo pelos imóveis.

Mas Anselmo insiste: “A drenagem, e não o rebaixamento para retornar com a água para a área da Vale, é a solução real para conciliar moradia e sustentabilidade em uma cidade que ficou carente de água justamente pelo uso intensivo da mineração.”

Construção da estação de bombeamento, entre a Estação João Paulo e o Estádio do Valério, é a solução encontrada pela Vale para a água parar de minar na grota da Penha; moradores discordam dessa solução
O que diz a Vale

Procurada pela reportagem, a mineradora retornou com o seguinte posicionamento:

“A Vale vem avaliando e monitorando, de forma sistemática, o nível d’água nas proximidades do Bairro Penha. Os pontos de surgência observados estão relacionados à recuperação natural e gradual do aquífero da região.

Comprometida com a segurança e o bem-estar das comunidades, a Vale está implantando um sistema de rebaixamento na estação João Paulo, incluindo a perfuração de poços. Também está prestando assistência às famílias e monitorando os imóveis que apresentam comprometimento na habitabilidade.”

Defesa civil também se manifesta
Outra casa desocupada, com os moradores transferidos para outra residência, com aluguel custeado pela Vale

Também procurada pela reportagem, a Prefeitura, por meio da Coordenadoria Municipal de Proteção e Defesa Civil (Compdec), apresentou as seguintes respostas aos questionamentos:

  1. Sobre o número de imóveis afetados pelo ressurgimento das nascentes: quantas residências foram interditadas no bairro Penha em razão da água invadindo e abalando estruturas de imóveis?

No ano de 2024, apenas um imóvel foi oficialmente interditado pela Defesa Civil em razão de acúmulo de água no terreno. Registros sobre essa situação existem desde 2016, não sendo possível afirmar que haja relação direta com o ressurgimento de nascentes.

  1. Como tem sido a atuação preventiva da Defesa Civil e acompanhamento técnico da Secretaria municipal de Meio Ambiente? Existe análise de risco geotécnico ou de movimentação estrutural das casas ainda habitadas?

A Defesa Civil acompanha de forma contínua as áreas de risco no município. De acordo com os relatórios mais recentes (junho e julho de 2025), não foram identificados elementos que indiquem risco à segurança estrutural ou instabilidade do terreno em função da presença de um lago existente no bairro.

As ações preventivas incluem mapeamento de áreas de risco, planos de contingência, emissão de alertas e medidas de mitigação.

  1. Moradores ouvidos pela reportagem apontaram com solução a realização de obra drenagem da água que escorre das nascentes até o canal da Penha. Como a Defesa Civil e o Meio Ambiente avaliam essa proposta. Se positiva, quem realiza? A Vale? A Prefeitura?

A Defesa Civil não tem conhecimento de projeto ou obra de drenagem direcionada ao canal da Penha. Caso haja necessidade, a demanda será encaminhada à Secretaria Municipal de Obras para avaliação.

Moradores sugerem construir um dreno para conduzir as águas superficiais até o canal da Penha, que também passa pela grota
  1. A Defesa Civil comunicou oficialmente essa situação à Vale, relatando os impactos desse ressurgimento de nascentes?

Em alguns casos, a Defesa Civil foi comunicada por moradores ou pela própria mineradora sobre situações na região, dentro de ações que envolvem o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG).

Mesmo sem evidências que associem diretamente o problema à atividade minerária, a Defesa Civil encaminhará questionamentos para manifestação da empresa.

Ainda ressaltamos que, em outros casos, não fomos acionados pela Vale tão pouco pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG).

  1. Há outros imóveis ameaçados? Mais moradores terão de ser removidos? Quais são os riscos, e quais são as medidas de segurança implementadas ou alternativas disponíveis?

Durante o período de estiagem, o risco é reduzido, mas não se descarta a possibilidade de novas ocorrências, especialmente em períodos chuvosos.

Caso identificado risco, a Defesa Civil realizará notificações e orientará a saída preventiva dos moradores, priorizando sempre a preservação de vidas.

Os riscos observados estão relacionados a desgastes estruturais e aumento no fluxo de água, sendo as medidas adotadas definidas conforme cada caso.

Há registros de famílias que optaram por permanecer nos imóveis, mesmo após notificações. Em outras situações, as remoções foram conduzidas pela mineradora e validadas pelo MPMG, sem participação direta da Prefeitura.

A Defesa Civil ainda esclarece que existem dois casos distintos nessa situação: O primeiro, relacionado a um lago que não possui ligação direta com afloramento de lençol freático, e é monitorado pelo órgão desde 2013.

O segundo, envolvendo dois imóveis cujos moradores foram retirados pela mineradora por meio de tratativa direta com o MPMG, sem acionamento da Defesa Civil.

Estamos a disposição para quaisquer outras dúvidas.

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