Prisão do presidente da Ultrafarma é um recado direto sobre corrupção fiscal e falhas no compliance corporativo
Foto: Reprodução/ Ultrafarma/Agência Brasil
Operação Ícaro desmantela esquema de corrupção fiscal que envolve grandes varejistas, auditores públicos e o fundador da maior farmácia online do Brasil
Por Valdecir Diniz Oliveira*
A prisão de Sidney Oliveira, presidente e fundador da Ultrafarma, nessa terça-feira (12), em São Paulo, marca um dos maiores escândalos fiscais da década. A Operação Ícaro, conduzida pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP), revelou um esquema bilionário de corrupção envolvendo grandes empresas varejistas e auditores fiscais da Secretaria da Fazenda estadual.
O caso expõe não apenas a fragilidade dos mecanismos de controle fiscal, mas também a ausência de uma cultura sólida de compliance em empresas que movimentam bilhões de reais por ano.
Segundo o Grupo de Atuação Especial de Repressão aos Delitos Econômicos (GEDEC), o esquema operava por meio da manipulação de pedidos de ressarcimento de créditos tributários de ICMS. Empresas como Ultrafarma, Fast Shop, Kalunga, Grupo Nós (Oxxo), Allmix Distribuidora e Rede 28 teriam se beneficiado de aprovações aceleradas e indevidas desses créditos, em troca de propinas milionárias pagas a servidores públicos.
O auditor fiscal Artur Gomes da Silva Neto é apontado como o principal articulador do esquema. Ele utilizava a empresa Smart Tax Consultoria, registrada em nome de sua mãe, Kimio Mizukami da Silva, uma professora aposentada de 73 anos, para receber os pagamentos ilícitos.
Em 2022, a Smart Tax recebeu mais de R$ 600 milhões da Fast Shop, sob a justificativa de serviços de consultoria tributária — embora não houvesse qualquer atividade real. O patrimônio da empresa saltou de R$ 411 mil em 2021 para R$ 2 bilhões em 2024.
A investigação começou há cerca de seis meses, mas os promotores apuram se o esquema já operava antes de 2021. Artur Gomes não apenas facilitava os pedidos de ressarcimento, como também os aprovava pessoalmente, evitando qualquer revisão interna. Em diversos casos, os valores liberados eram superiores ao que as empresas tinham direito, e os prazos de liberação eram drasticamente reduzidos. Estima-se que o esquema tenha rendido cerca de R$ 1 bilhão em propinas desde 2021.
Quem mais está envolvido
Além de Sidney Oliveira e Artur Gomes, foram presos Marcelo de Almeida Gouveia, auditor fiscal da Delegacia Regional Tributária de Osasco; Mário Otávio Gomes, diretor estatutário da Fast Shop; Celso Éder Gonzaga de Araújo e Tatiane Lopes, acusados de lavagem de dinheiro.
Também são investigados Alberto Toshio Murakami, auditor aposentado, e as contadoras Fátima Regina Rizzardi e Maria Hermínia de Jesus Santa Clara, apontadas como assistentes na elaboração dos pedidos fraudulentos.
Durante a operação, foram apreendidos R$ 1,8 milhão em espécie, US$ 20 mil, 2 mil euros, R$ 10 milhões em criptomoedas, relógios de luxo, esmeraldas, joias, documentos digitais e até máquinas de contar dinheiro.
O Ministério Público também investiga se há outros auditores fiscais envolvidos e se mais empresas varejistas utilizaram o mesmo esquema, embora seus nomes ainda não tenham sido divulgados.
Lições para o setor empresarial
O escândalo oferece lições valiosas para o setor empresarial. Ter políticas de compliance não basta: é necessário garantir que elas sejam aplicadas, auditadas e que haja canais seguros para denúncias.
O envolvimento direto do CEO mostra que a cultura ética precisa partir da alta gestão. O uso de empresas de fachada reforça a importância de verificar a idoneidade de parceiros e consultorias.
Empresas precisam de mecanismos internos para revisar processos fiscais e identificar inconsistências antes que se tornem escândalos públicos. Além disso, a proximidade excessiva com agentes públicos sem controle institucional pode ser um sinal de alerta.
Casos similares: Ricardo Eletro e Lojas Americanas
Embora o caso da Ultrafarma envolva corrupção ativa com servidores públicos, há paralelos com outros escândalos corporativos recentes. Em 2020, o fundador da Ricardo Eletro, Ricardo Nunes, foi preso por sonegação de mais de R$ 400 milhões em ICMS. Ele teria cobrado o imposto dos consumidores sem repassá-lo ao estado, e o caso envolveu corrupção ativa e lavagem de dinheiro.
Já em 2023, as Lojas Americanas revelaram um rombo contábil de R$ 20 bilhões, resultado de manipulações nos balanços envolvendo operações de risco sacado e verbas de propaganda cooperada. A fraude levou à maior recuperação judicial da história do Brasil e à denúncia de 13 ex-executivos por associação criminosa e lavagem de dinheiro.
Apesar das diferenças técnicas — sonegação direta no caso da Ricardo Eletro, fraude contábil nas Americanas e corrupção fiscal na Ultrafarma — os três casos revelam um padrão preocupante: empresas de grande porte, com forte presença no mercado, ignorando princípios básicos de governança e ética corporativa.
Um alerta sistêmico
A Operação Ícaro não é apenas um episódio policial — é um alerta sistêmico. Mostra como o sistema tributário brasileiro, complexo e vulnerável, pode ser manipulado por quem tem acesso privilegiado e interesses escusos. Também revela que, sem fiscalização efetiva e cultura ética, até os maiores nomes do varejo podem se tornar protagonistas de esquemas que drenam recursos públicos e corroem a confiança da sociedade.
A Ultrafarma, que se consolidou como a maior farmácia online do país, agora enfrenta uma crise reputacional sem precedentes. O escândalo pode ser um divisor de águas para o setor privado e para o poder público, que precisa rever seus mecanismos de controle e responsabilização.

*Valdecir Diniz Oliveira é cientista político, jornalista e historiador