Municípios minerados têm perdas bilionárias com a Cfem e cobram justiça tributária em audiência pública na ALMG
Visita à mina Cauê, quando ainda havia minério de ferro, em agosto de 1984
Foto: Eduardo Cruz
Itabira lidera prejuízos com sonegação de royalties do minério em Minas Gerais; AMIG Brasil lança campanha nacional e aciona Ministério Público
Carlos Cruz*
Dizia Karl Marx que “a história se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”, conforme ele escreveu na abertura de sua obra O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, publicada em 1852, ao comentar o golpe de Estado de 1851, quando Luís Bonaparte (Napoleão III) assumiu o poder na França, imitando o golpe dado por seu tio, Napoleão Bonaparte, em 1799.
Pois bem, isso é para dizer que, passados 41 anos desde a realização, em Itabira, do I Encontro Nacional das Cidades Mineradoras, a mesma pauta de lutar por justiça tributária para os municípios minerados, sem agregar valor às commodities, retorna ao centro do debate.

Nos dias 21 e 22 deste mês, será realizado em Belo Horizonte o IV Encontro Nacional dos Municípios Mineradores, tendo como ponto de partida o novo marco regulatório da mineração, que impõe prejuízos ao ente mais fragilizado da federação brasileira, o município minerado, assim como a reforma tributária, recentemente promulgada e que também acarretará perdas tributárias.
Assim a história, nesse caso, se repete como necessidade, ainda que com boa dose de tragédia, quando já se aproxima em Itabira o fim da mineração em seu território, previsto para 2041.

É que, apesar da extinção do Imposto Único sobre Minerais (IUM) com a Constituição de 1988, quando as substâncias minerais passaram a ser taxadas também pelo ICMS, e da criação da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (Cfem), os chamados royalties do minério, a reivindicação por justiça tributária permanece atual.
A Constituição de 1988 trouxe avanços, mas a arrecadação maior que viria para os municípios minerados foi corroída ao longo dos anos com o advento da Lei Kandir, que isenta o minério de ferro exportado do pagamento de ICMS, o que atinge praticamente todo o volume de minério de ferro extraído no Complexo Minerador de Itabira, explorado desde 1942 pela mineradora Vale.
Soma-se a isso a fragilidade da fiscalização da Cfem, baseada na autodeclaração das mineradoras e na atuação limitada da Agência Nacional de Mineração (ANM).
Daí que praticamente a mesma pauta debatida no encontro de Itabira, em 1984, retorna com novas reivindicações agregadas quatro décadas depois, atualmente, quase como tragédia para Itabira, o primeiro município a ter em seu território a extração de minério de ferro em larga escala, a partir de 1942 pela hoje multinacional Vale S.A.
Tragédia já há muito anunciada pelo que acontece em Itabira, que se vê exaurindos gradativamente suas reservas e recursos minerais, com quedas que virão sucessivamente em sua arrecadação tributária, sem criar uma nova estrutura econômica.
E sem que tenha tido as compensações devidas pelo muito que contribuiu para derrotar o nazifascismo e para o desenvolvimento do capitalismo mundial, defrontando-se, hoje, com os mesmos problemas ambientais de sempre, mantendo uma dependência estrutural à mineração que não mudou ao longo dos anos, por motivos diversos.
Audiência pública na ALMG escancara perdas bilionárias

Durante a audiência Justiça Socioambiental e Tributária e as Atividades da Mineração, realizada nessa segunda-feira (11) na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, o professor da Universidade Federal de Viçosa (UFV), Tádzio Peters Coelho, apresentou dados alarmantes sobre a sonegação.
Segundo ele, entre 2009 e 2020, o Brasil deixou de arrecadar R$ 3,29 bilhões com a Cfem devido ao subfaturamento nas exportações de minério de ferro. Itabira foi o município mais prejudicado, com perdas estimadas em R$ 199 milhões. Mariana, Congonhas e Brumadinho também sofreram prejuízos significativos.
De acordo com Coelho, o modelo atual permite que mineradoras vendam minério abaixo do preço de mercado para subsidiárias em paraísos fiscais, onde a Cfem é calculada.
O produto, no entanto, segue diretamente para países como a China. “Isso gera um prejuízo imenso e lesa a população. Em Itabira, por exemplo, o valor seria suficiente para comprar mais de 600 ambulâncias”, contabilizou.
Marco Antonio Lage: “Exportar minério in natura é neocolonialismo”

O prefeito de Itabira e presidente da AMIG Brasil, Marco Antônio Lage (PSB), denunciou o modelo de mineração vigente como uma forma moderna de neocolonialismo.
“Exportar minério in natura é perpetuar a dependência econômica e social dos municípios mineradores”, disse ele, lamentando o fato de Itabira não ter tido a oportunidade, negada pelo Estado e pela própria então estatal Companhia Vale do Rio Doce, de beneficiar o seu produto primário em seu território, agregando mais impostos, empregos qualificados e maior renda no município.

Lage lembrou que, mesmo após 83 anos de mineração, Itabira ainda não colheu frutos estruturais duradouros. “O município tem IDH abaixo da média estadual e permanece dependente da Vale. A perda de outras atividades econômicas, como a indústria têxtil (Gabiroba e Pedreira), agravou o cenário.”
Ele cobrou também o reaproveitamento de rejeitos da mineração – e mais transparência da mineradora Vale. “As barragens da Vale em Itabira somam mais de 500 milhões de metros cúbicos de rejeitos. Ainda temos ouro no Pontal?”, indagou o prefeito e presidente da Amig Brasil. Leia também aqui: Drummond prevê, em crônica de 1977, a exploração de ouro no rejeito do Pontal.
Bella Gonçalves propõe fundo soberano e fiscalização compartilhada

A deputada estadual Bella Gonçalves (PSOL), autora do requerimento da audiência, defendeu propostas como a criação de um Fundo Soberano dos Municípios Minerados, assim como a regulamentação do caução ambiental e a revisão da Cfem.“Não estamos falando da impossibilidade de a mineração se realizar. Mas é preciso construir alternativas de soberania sobre os processos minerários”, afirmou.
A parlamentar também anunciou que pretende elaborar projeto de lei para permitir que municípios atuem junto ao Estado na fiscalização da arrecadação da Cfem.
Já o professor Bruno Milanez (UFJF) apresentou o projeto De olho na Cfem, que monitora a destinação dos recursos da compensação em cidades como Conceição do Mato Dentro, Congonhas e Itabira.
Segundo ele, os municípios têm utilizado os valores para despesas correntes, sem investir em alternativas econômicas que reduzam a dependência da mineração.
É o que ocorre historicamente em Itabira, com recursos dessa compensação sendo alocados na manutenção do Hospital Municipal Carlos Chagas, um desvio de finalidade – e também nos repasses à Itaurb, para a varrição da cidade, coleta e disposição de resíduos urbanos.
AMIG Brasil lança campanha nacional contra sonegação
Nessa mesma linha, durante a 59ª Assembleia Geral da AMIG Brasil, realizada em 8 de abril deste ano, no Plenário 3 da Câmara dos Deputados, em Brasília, foi lançada a campanha O mineral é seu. O prejuízo também.
A iniciativa expõe dados do Tribunal de Contas da União (TCU), que apontam que cerca de 70% dos títulos minerários ativos no país não recolhem Cfem. Entre os que pagam, muitos o fazem com valores até 40% inferiores aos devidos.
Segundo Waldir Salvador, consultor da Amig Brasil, o prejuízo total pode chegar a R$ 20 bilhões, valor suficiente para construir 400 hospitais, 5 mil escolas ou pavimentar 6 mil quilômetros de estradas.
“Estamos falando de infraestrutura, saúde, educação e dignidade para milhões de pessoas. Em vez disso, o que vemos é a perpetuação de um modelo de arrecadação falho”, criticou.
Ministério Público entra na investigação
Diante da gravidade, a AMIG Brasil acionou o Ministério Público Federal (MPF), que instaurou inquérito e solicitou informações à ANM. A associação também pediu audiência com o MPF para discutir medidas urgentes, como o fim da autofiscalização e o fortalecimento da agência reguladora.
Marco Antonio Lage reforçou a urgência de reestruturar a ANM. “Sem uma fiscalização rigorosa, o Brasil continuará perdendo bilhões de reais que poderiam transformar as condições de vida das populações dos municípios minerados.”
Reforma Tributária tem avanço com perdas
O deputado Reginaldo Lopes (PT-MG) apresentou, recentemente em Itabira, os avanços da Reforma Tributária, aprovada após décadas de debate. Segundo ele, o novo modelo traz justiça fiscal e equilíbrio federativo, com mecanismos como o seguro-receita e o compartilhamento do imposto seletivo.
Apesar disso, estudo da UFMG encomendado pela AMIG Brasil aponta que os municípios mineradores perderão cerca de 20% de suas receitas. Embora representem 4% do PIB e 10% da balança de exportação, são em sua maioria cidades pequenas, que receberão menos conforme as novas regras.
Daí que a AMIG Brasil articula o realinhamento da Cfem como forma de compensar essas perdas e garantir justiça fiscal aos territórios minerados.
A conferir se daqui quatro décadas, a história não se repetirá como tragédia, farsa ou necessidade.
*Com informações das assessorias de imprensa da ALMG e da Amig Brasil.