O que a história não conta, o samba canta
Foto: Tomaz Silva Agência Brasil
Pesquisadora Cláudia Alexandre fala sobre o papel político da folia e sua importância cultural para o Brasil
Por Andrea DiP, Claudia Jardim, Ricardo Terto, Stela Diogo, Ana Alice de Lima
Edição: Mariama Correia
Agência Pública – Os festejos conhecidos como entrudos, que aconteciam no Império Romano, no Egito antigo e na Mesopotâmia, ganharam novas roupagens durante a colonização do Brasil. No país, as pessoas negras escravizadas incorporaram o samba e fizeram nascer uma das maiores festas populares do mundo, o Carnaval brasileiro.
A pesquisadora e cientista da religião Cláudia Alexandre diz que os cantos, expressões e gestos das pessoas escravizadas, trazidos para a folia, foram, por muitos anos, formas de comunicação e resistência. “A festa, que muitas vezes foi lida como mero entretenimento, para os negros era composta por códigos e símbolos muito elaborados, que significaram – e ainda significam – um grito pela liberdade”, explica.
Na entrevista para o Pauta Pública desta semana, Cláudia Alexandre faz um resgate histórico do Carnaval enquanto espaço político de luta, memória e resistência, destacando o papel fundamental do samba. Para ela, é essencial conhecer as tradições que sustentam essa manifestação cultural que resistiu às tentativas de apagamento e se consolidou como parte inseparável da identidade brasileira.
Para a pesquisadora, há uma equação que precisa ser solucionada para evitar o esvaziamento das pautas políticas do Carnaval e proteger sua história. “Não é porque hoje o Carnaval está digitalizado e precisa ganhar números [em lucros e audiência] que a gente tem que se perder da nossa história.
Leia os principais pontos da entrevista a seguir:
Por que temos o Carnaval e o que essa festa representa na nossa cultura?
Quando acessamos alguns estudiosos, entre eles o professor Luiz Antônio Simas, ele vai falar que a gente faz festa para esquecer as tristezas. Se for olhar a origem das expressões negro-africanas, que vai culminar nesse Carnaval que hoje a gente assiste na televisão, que é esse Carnaval das escolas de samba, a gente vai falar que é esse mesmo o motivo dessa festa, dessa herança negro-africana que a gente recebe.
Os cantos, as expressões, o gesto e o corpo foram utilizados pelo negro em cativeiro, em situação de escravizado, para se comunicar. Então, a festa, que muitas vezes foi tida como algo de entretenimento, para o negro eram códigos, símbolos muito elaborados pra se comunicar naquele momento. Então, se for falar da história do samba, no início, vai ver que no final do século 18 pro 19 os colonizadores, quando viam as expressões negro-africanas, não conseguiam saber se era reza, se era festa.
Então, esse Carnaval brasileiro que a gente tanto admira, que faz parte da identidade nacional, é uma forma de lembrar a nossa própria história, de aprender sobre nós. Se for falar dos sambas-enredos que as escolas de samba nos trazem – elas trazem a história, principalmente os sambas ligados à cultura afro, às religiosidades –, trazem a história de um povo que não está contada nos livros. Então, em algum momento, a festa significou um grito pela liberdade, e hoje ela ainda significa, se você for falar sobre a história das escolas de samba, atos de resistência.
Mas é preciso estar muito envolvido com essa festa do Carnaval, é preciso olhar de uma outra forma para a festa que as escolas de samba ainda mantêm para entender o que significa essa herança negra que ainda está no Carnaval das escolas de samba. A festa, para mim, ela é Carnaval, mas ela é canto, ela é a reza com canto e é o canto da reza.
Qual é o papel do samba na conscientização política?
O samba é o resultado de lutas pela liberdade. Em algum momento no Brasil, no século 19, tivemos leis que criminalizam a expressão do samba. Sambar era proibido, tocar o samba era proibido, portar um instrumento musical ligado a essas expressões afro-brasileiras era proibido.
Então, o samba já começa ali como uma linguagem para falar sobre as realidades, sobre o seu cotidiano. Por que o samba do Rio de Janeiro é tão famoso? Primeiro, pelas expressões que foram possibilitadas pelo encontro da musicalidade baiana com a musicalidade carioca.
E, num segundo momento, porque o Rio de Janeiro, naquele momento do surgimento do samba, era a capital do Brasil. E ali, quando o samba surge como um elemento da identidade nacional, ele surge como esse ato de resistência de negros que escreviam letras, que faziam seus improvisos, que dançavam nas praças, que tinham suas rodas de samba invadidas pela polícia, que eram denunciados pela imprensa, porque, naquele momento, o samba não era só tocar e dançar, também estava ligado às religiosidades. Neste ano tivemos a própria Mangueira falando sobre a cultura banto, que vai dar origem às escolas de samba ali no Rio de Janeiro.
Quando você pega o processo histórico, ele está ligado, primeiramente, a essa forma do negro dizer das suas riquezas e contribuições para a constituição da sociedade brasileira, mas ele vai passar por todos os momentos políticos do Brasil.
Vai ter um momento em que ele é perseguido por conta da ditadura; ainda reforçado pela questão racial, nos momentos dos planos econômicos, você vai ver os sambas-enredo satirizando a mudança dos momentos em que a moeda era superinstável, e a cada momento vinha um plano econômico. A gente vai ver a denúncia de resistência contra as violências, contra as minorias, como aconteceu com a própria Mangueira, quando ela vai e fala sobre o caso Marielle.
O samba sempre foi assim. Ele dá voz para uma parcela da população que está esquecida pela política pública. Então, se a gente for estudar a história do samba a partir das linguagens da poesia e da escrita, a gente vai ver o quanto se tem de registros e registros de denúncias sobre as desigualdades no Brasil.

Você acha que ao longo do tempo também houve um esvaziamento das pautas políticas do Carnaval, seja por consequência de apropriação cultural ou econômica?
Até a década de 30 no Rio de Janeiro, Carnaval era coisa de preto, vamos dizer assim. Então, era um lugar discriminado, era um lugar que estava sempre associado ao imaginário de violência, associado à confusão, à bagunça, então era um espaço totalmente inferiorizado.
A partir da década de 30, vamos ter, além da popularização do rádio, da imprensa, da mídia, vai ter a era Vargas, com aquele ideal de populismo. Aí começa a ver a aproximação do surgimento da indústria cultural, e, aí sim, tem a ver com quando você fala de apropriação. Porque se começa a entender que aquela manifestação, além de muito popular, pode se transformar num produto.
Então, quando há a midiatização a partir da década de [19]80 e a exploração dessas expressões culturais pela indústria, pela indústria de consumo, vamos perceber duas coisas. Primeiro, que há um esvaziamento, sim, da cultura, da história, porque é produto, e produto a gente sabe que está voltado ao poder do capital e o quanto ele pode render economicamente.
É possível observar uma transformação grande dentro dessa manifestação da escola de samba, o Carnaval se torna um produto – o Carnaval das escolas de samba, inclusive – e chega à televisão na década de 80. E aí começa a ver uma padronização desses desfiles, uma interferência no próprio enredo que a escola de samba traz.
Até a década de 30, o Carnaval falava da negritude, falava da mulher negra, falava dos reis e rainhas africanos, falava da situação de miséria, cantava a situação do morro, a situação da fome, e isso, se estava ligado à população negra, ninguém dava bola, ninguém reclamava que a escola falava da macumba, ninguém reclamava que a escola exaltava os orixás, e as escolas surgem exaltando esses terreiros.
Agora, a partir da década de [19]80, começam a se questionar por que a escola de samba tem que falar de tema negro, tem que falar de orixá. A escola de samba passa a não ter direito de falar sobre si. Há, sim, uma interferência, há, sim, uma midiatização.
Há, o que eu sempre falo, uma equação que precisa ser solucionada, que é a tradição que a gente não pode perder, e o que a gente pode chamar de modernidade, de transformação do meio social, para que possamos proteger a nossa própria história. Não é porque hoje o Carnaval está digitalizado, não é porque é preciso ganhar números em audiência e vencer o campeonato que tem que se perder da nossa história.
Há um provérbio africano que fala que, se você não sabe de onde você veio, você não conseguirá chegar até onde você precisa ir. Então, você precisa sempre reverenciar o seu passado e utilizar essa sabedoria para as suas melhorias no presente.
Como você vê o crescimento dos blocos de rua? Você acha que isso impacta de alguma maneira as comunidades dos territórios do samba hoje?
Diretamente. Eu vejo que tem a ver também com a indústria de consumo, tem a ver com os investimentos, porque, quando você fala do crescimento dos blocos de rua, observa-se que há uma onda.
Quando se olha como essa dinâmica dos blocos aconteceu em São Paulo, é possível ver que grandes marcas investiram na manutenção e na formação e impulsionaram o surgimento de novos blocos.
Há uma indústria de produção desse evento que traz grandes nomes do Carnaval da Bahia, do Carnaval do Rio de Janeiro, para puxar blocos, trios elétricos em São Paulo, que não era uma tradição da cidade de São Paulo.
Primeiro, esse grande boom do bloco de rua, acho que é precisamente de São Paulo, porque as outras capitais já tinham essa tradição e não têm escola de samba. Então, impacta no sentido de que o investimento vai ficar sempre em um segmento de poder econômico que está consumindo os blocos de rua e que deixam de consumir o Carnaval no sambódromo.
E aí surge uma outra questão, que são essas marcas que patrocinam isso. Enquanto houver publicidade, enquanto houver marcas patrocinando, esse Carnaval, em especial de São Paulo, vai crescer ainda mais. Mas esse mesmo investimento, esse mesmo olhar das marcas, não está para a manifestação das escolas de samba.
Então, o carnaval de rua de São Paulo sempre existiu com as marchinhas, com as bandas, mas com esses blocos, fazendo um carnaval similar ao que acontece nas grandes capitais, ou um carnaval formatado, isso é uma grande novidade para São Paulo, mas está totalmente relacionado ao investimento.
Existe bloco sem patrocínio? Existe bloco sem espaço, sem estrutura para continuar, que não seja sustentável? Existe. Mas os grandes blocos estão trazendo grandes massas para as ruas e têm alto investimento para o evento.