Notas sobre a Fazenda do Pontal

Ilustração: Genin Guerra                                                 

Carlos Drummond de Andrade

Descendente de antiga família de fazendeiros de gado e lavoura, em Minas Gerais, nunca me interessei pela vida do campo e já agora, em idade avançada, sinto a nostalgia da vida rural que não conheci.

Das fazendas que meu pai possuiu a mais próxima da cidade de Itabira, onde morávamos, era a do Pontal, conhecida anteriormente por Fazenda dos Doze Vinténs, ou dos Doze, simplesmente, como a designava a gente mais velha.

Mudando-se para a cidade, com a família, depois de longos anos de vida campesina, meu pai não deixava de ir vê-la diariamente, pois ficava muito perto de Itabira. Ele saía a cavalo, pela manhã, voltando ao entardecer, finda a jornada de trabalho, que era rude.

Revolvendo papéis antigos que me coube conservar, encontrei esta descrição da propriedade, feita do seu próprio punho.

A fazenda denominada Pontal, distrito da cidade de Itabira do Mato Dentro quatro quilômetros, compreende uma área de trezentos alqueires, com divisas certas e determinadas, dos quais duzentos alqueires em campos de ótima qualidade, com pastagem de capim-gordura e grande parte de capim-jaraguá.

Os cem alqueires restantes acham-se ainda em matas e capoeiras de superior qualidade cultura, contendo grande quantidade de madeira de lei. Começando a produzir agora, existem vinte mil pés de cafeeiro, ocupando uma área de cinco alqueires.

A fazenda acha-se em parte fechada a valo, tendo diversos apartadores. É servida por duas excelentes aguadas, movendo a mais alta um engenho de serrar madeira, e a outra, igualmente abundante, um engenho de socar café e um moinho. Este engenho foi construído há pouco e é de boa qualidade.

A casa de vivenda é magnifica, sendo um sobrado de palmos de frente por quarenta de fundo, mais ou menos, com dois andares na frente e três nos fundos, todo forrado e assoalhado de tábuas.

Os cômodos, tanto dos andares superiores como do pavimento térreo, são amplos e arejados, com janelas envidraçadas, com portais e portas pintadas a óleo sendo as paredes dos cômodos superiores forradas a papel, e achando-se o prédio em excelentes condições de conservação.

Em seguimento a casa, existe um grande curral, fechado por dois lados a muro de tábuas de boa qualidade, em forma de gradil, fechando o curral por um dos outros dois lados uma grande coberta de telhas, com mais de cem palmos de frente por quarenta de fundo, obra nova e solidamente construída, servindo para abrigo de vacas leiteiras.

Em seguida a uma coberta, está o paiol, que é amplo e de boa construção. Em frente, e fechando o curral, existe um sobrado servindo para tulha, tendo ao lado duas boas casas para empregados.

As estradas são muito boas e bem conservadas, sendo que a que vai da cidade para a fazenda é quase plana em sua extensão, a partir do alto que domina a cidade. O proprietário da fazenda mantém nela, anualmente, cerca de duzentas bestas novas em recria e cento e cinquenta cabeças de gado bovino, fornecendo diariamente grande quantidade de leite para o consumo da cidade e fornecendo gado para abastecimento de carne verde, sendo o melhor que se abate nesta cidade.

Anexo à fazenda, em uma encosta mais afastada, existem terrenos auríferos que foram explorados pelos antigos, que deram às lavras a denominação de Minas dos Doze Vinténs, fazendo o naturalista Saint-Hilaire especial menção dessas minas em sua conhecida obra sobre o Brasil e particularmente sobre a antiga Província de Minas Gerais.

A fazenda dista cinco quilômetros das minas de Santana e do Cauê. Ultimamente, quando as minas do Cauê foram estudadas por conta da firma Theodor Wilke e Companhia, o proprietário da Fazenda do Pontal fez grande fornecimento de tábuas, madeiras, leite, queijos, cerais, etc. para a exploração que então se fazia. Trata-se agora da exploração das minas de Santana, podendo a Fazenda do Pontal fazer o mesmo fornecimento, sem que possa ter competidor.

O proprietário dispõe dessa fazenda por ter deliberado sua mudança para Belo Horizonte, por motivo de educação de seus filhos.

A venda não se efetuou, continuando meu pai a residir em Itabira até a segunda década deste século. Antes, porém, de transferir residência para Belo Horizonte, fez doação do Pontal a seus filhos.

Em 1954, a propriedade deixou de pertencer à nossa família, e anos depois a Companhia Vale do Rio Doce, desmontando peça por peça a casa de vivenda, instalou no local uma represa, para lavagem e recuperação de resíduos de minério de ferro. Há o projeto de reedificação do prédio, na cidade de Itabira, para servir a fins culturais.

No fim do século passado, meu pai empreendeu no Pontal uma experiência de cultura de uva e fabricação de vinho de mesa. O jornal O Tempo, que se publicava na cidade a partir de novembro de 1889, noticiou, em uma de suas edições de 1891, que o vinho fabricado na Fazenda do Pontal pelos senhores Andrade e Sipolis era “equiparável aos melhores recebidos da Europa, na opinião dos bons chipistas”.

Entre papeis em meu poder, figura minuta de locação de serviços, anos mais tarde, tendo como locador Casimiro Sipolis, francês e industrial, e como locatário Carlos de Paula Andrade, brasileiro e agricultor, fixando-se as seguintes cláusulas:

I – O locador Casimiro Sipolis compromete-se a prestar ao locatário Carlos de Paula Andrade os seus serviços para administrar a indústria de fabricação de vinho e aguardente, explorando uma vinha de cerca de trinta mil pés de uvas, que o locatário possui em sua fazenda denominada Pontal, do distrito desta cidade, sendo 5000 para ser plantados para o ano de 1901.

II – O locador obriga-se a não se empregar, durante o prazo do presente contrato, em outro mister, que distraia os seus serviços do fim principal do presente contrato, e assim compete-lhe:

a) cuidar da conservação da vinha existente, administrando as capinas, replantas necessárias, vindimas, etc. e o mais respectivo à mesma indústria e cultura; b) fazer, por si próprio, e sem mais despesas para o locatário as podas convenientes; c) empregar todos os meios e cuidados necessários para o bom fabrico do vinho e aguardente; d) ter sempre o vasilhame e depósitos dos produtos da indústria na melhor ordem, asseio e conservação; e) estender (espaldar desde já, em toda vinha, o arame fornecido pelo locatário, sem mais outra despesa para este, que dará também colocados os postes precisos).

III) – O locatário Carlos de Paula Andrade compromete-se para com o locador Casimiro Sipolis:

a) a dar-lhe, gratuitamente, enquanto vigorar o presente contrato, casa para sua residência, na Fazenda do Pontal, com 12 alqueires de terreno para suas plantas; b) a fornecer os trabalhadores necessários para as capinas da vinha, vindimas, transporte de uva e auxiliare para o fabrico de vinho e da aguardente, correndo os jornais ou salários dos mesmos por conta exclusiva, o açúcar necessário para o fabrico daqueles produtos; d) a fornecer todo o vasilhame e depósitos necessários para o fabrico, conservação e acondicionamento dos produtos; e) a dar, anualmente, ao locatário trinta por cento (30%) do resultado bruto da produção da vinha, a título de pagamento de seus trabalhos e indústria, o vinho sendo partido logo que for bom para se beber.

IV – Os carretos para a venda dos produtos da vinha serão pagos proporcionalmente pelo locador e locatário.

V – O prazo de duração do presente contrato será de dez anos, acabando o último ano a 1º de maio de 1912 e ficando estabelecida uma multa que poderá chegar até quinhentos mil réis (Rs 500$000) e que deverá ser paga pela parte que transgredir qualquer cláusula do presente contrato, à outra que estiver no desempenho e observância de suas obrigações e deveres esta clausula não sendo aplicável ao prazo de doze anos marcado para o fim do contrato.

VI – Antes de findo o prazo deste contrato, ficará o mesmo sem efeito se ocorrer moléstia ou praga na vinha de modo a tornar excessivamente dispendiosa a sua conservação e exploração. Neste caso, porém, nenhuma das partes poderá exigir de outra a multa acima estabelecida ou outra qualquer indenização.

E por assim terem contratado e estipulado, lavraram o presente contrato, escrito em sua integra pelo locador, Casimiro Sipolis, para ficar em poder do locador Sipolis, sendo ambos os exemplares devidamente selados, datados e assinados pelas partes contratantes, com as testemunhas F. e F. depois de lidos, conferidos e achados conformes.

O empreendimento não alcançou os resultados que seriam de esperar, dada a boa qualidade do produto exaltado, sem duvida com desculpável exagero bairrista, pelo jornal itabirano. De tudo vim a conhecer, anos mais tarde, apenas os rótulos de garrafas, mandados imprimir por meu pai e que foram encontrados na velha casa da fazenda.

Localizado bem próximo da cidade, como ficou dito, o Pontal era vítima da devastação de suas matas, como se verifica pelo texto redigido por meu pai e que, como o anterior, destinado a vender a fazenda, deve ter sido publicado em jornal itabirano.

Ao se mudar de Itabira para Belo Horizonte, em 1920, os Drummond de Andrade moraram por um tempo em hotel, mas o chefe da família cuidou logo de comprar uma área de bom tamanho no bairro Floresta, onde uma casa — que há muito já não existe — foi construída nos anos 1922-23, hoje substituída por um edifício de apartamentos. Uma placa alusiva à antiga residência do poeta havia sido arrancada por vândalos .[Blog Drummond]
Protesto – Invasão, destruição e incêndio de propriedade particular – O abaixo-assinado, proprietário da Fazenda denominada Pontal, deste distrito, protesta contra o abuso criminoso dos lenhadores e fornecedores de lenha desta cidade, que, sem sua autorização, invadem diariamente aquela propriedade, não só devastando e destruindo os matos e capoeiras da mesma, tirando madeiras para venderem como lenha, e ainda lançando fogo para preparem esse combustível.

Semelhante prática constitui os crimes previstos no artigo 141 do Código Penal que diz: incendiar plantações, colheitas, lenha cortada, pastos ou matas, ou flores pertencentes a terceiros ou particular:

Penas – de prisão celular de um a três anos multa de 5 a 20% do dano causado. E no artigo 329, que dispõe: Destruir ou danificar cousa alheia, de qualquer valor, móvel, imóvel ou semovante: Penas de prisão celular por um a três meses e multa de 5 a 20% do dano causado. Além disso, fica ainda ao proprietário o direito de haver completa satisfação do dano, pelos meios ordinários.

Não podendo o abaixo-assinado tolerar semelhante abuso, previne a quem possa interessar que está disposto a usar de todo tempo, em qualquer condição e contra quem quer que seja o seu direito, intentando as ações criminais contra os transgressores, e as civis, para satisfação do dano, em que incorrerem.

Por enquanto, limita-se ao presente protesto, para o qual chama a atenção do digno Sr. Delegado de Polícia e  do ilustre Sr. Agente Executivo, porquanto, antes de tudo, incumbe-lhes a prevenção de tais abusos e atentados, de conformidade com as leis e regulamentos em vigor.

Itabira, 26 de julho de 1905. Carlos de Paula Andrade.

Ao fazer estas transcrições, desejo simplesmente fornecer alguns dados a possíveis estudiosos da organização rural mineira no passado em alguns de seus múltiplos aspectos.

[Suplemento A Lavoura Literária, Nov/dez. 1981, n. 84] Rio de Janeiro: Suplemento especial comemorativo do 85º aniversário da Sociedade Nacional de Agricultura. Reprodução: Jornal O Cometa Itabirano – Pesquisa: Cristina Silveira]

 

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2 Comentários

  1. “Notas sobre a fazenda do Pontal” é uma bela pesquisa de Cristina Silveira. Revela um problema existente há um século: o sequestro de talentos das pequenas cidades para os grandes centros. Os mais talentosos estudantes, ou privilegiados, como Drummond saem ainda hoje para estudar e nunca mais retornam. É uma evasão de talentos e uma perda imensa de capacidade de desenvolvimento local. Daí, a urgência de descentralização das grandes universidades e órgãos de pesquisa para o interior do Estado.

  2. Caro José Teófilo, além da ausência de arquivos vivos no interior, há também a arrogância dos doutores das grandes cidades e, a estupidez dos mandatários provincianos. Eu estou próxima da desistência de tudo, ao me perguntar: para que serve a vida? Neste momento a 3 grande guerra da Europa está por vir, agora ou em 2030, e a mineradora bastarda será útil assim como foi na 2 grande guerra dos psicopatas do Ocidente coletivo. Para que serve a vida?

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