Artista confronta memórias de medo para produzir obra fotográfica
O Tiro
Fotos: Wilame Lima
Na terapia, Wilame Lima foi convidado a enfrentar traumas e recontar sua história usando a fotografia, dando início ao processo de sua formação enquanto artista. Neste mês, terá início a exposição de suas fotografias na Galeria Azur, em Berlim, na Alemanha
As obras provocativas do artista visual Wilame Lima, 41 anos, resultaram de um processo doloroso e libertador da exploração de sua própria história. Nesse sentido, para chegar ao ponto em que se encontra hoje de sua trajetória pessoal e artística precisou desvendar episódios fundamentais para a sua formação individual há muito escondidos no seu subconsciente e refletir mais demoradamente sobre os sentimentos que emergiram da revelação dessas memórias reencontradas.
Wilame considera um divisor de águas em sua trajetória de vida a demissão do seu pai, até então tesoureiro de um banco, na esteira das medidas instituídas pelo governo Collor para reduzir a inflação e melhorar a economia do país. No início da década de 1990, muitas famílias sofreram as consequências do arrocho imposto pelo novo presidente. A família de Wilame foi uma delas.
Além de seu pai, que perdeu o emprego, sua mãe, funcionária pública do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), viu seu salário reduzido pela metade. Como consequência, relata o artista, ficou muito difícil pagar as contas no final do mês. “Meus pais sempre fizeram muitos sacrifícios para que meu irmão e eu pudéssemos ter o mínimo, mas hoje eu entendo o quanto foi difícil para eles”, diz.
Natural de Aracaju, Sergipe, Wilame conta que viveu uma infância e adolescência sem grandes luxos depois do declínio financeiro de sua família. O artista recorda que tinha muita vergonha de onde morava e do que não tinha para mostrar às pessoas.
Algo que se agravou pelo fato de ter estudado em uma escola particular paga por sua tia. “Sempre me senti deslocado, como se estivesse no lugar errado e não merecedor de frequentar certos ambientes. A sensação de valer menos me acompanhava em todos os lugares aonde eu ia”, relembra.
Wilame também considera um marco em sua vida a compressão de sua homossexualidade. “Eu nunca tive dúvidas de que era gay. Mas achava que o que eu sentia era algo muito errado que deveria ser escondido”, relata.
O fato de crescer em um ambiente fortemente marcado pela religião – a família de seu pai era evangélica e de sua mãe transitava por diversas religiões (umbanda, catolicismo, espiritismo etc.) – contribuiu, segundo o artista, para que introjetasse uma grande culpa pela pessoa que era. “Por estar no meio de tudo isso, eu nunca consegui desenvolver, na minha adolescência, a minha sexualidade como eu gostaria”, conta.
A única “pessoa” com que Wilame dividia suas angústias era a folha de papel. “Eu desenhava o tempo inteiro, porque não podia falar sobre o que eu sentia com ninguém. Mas até no papel eu não me expressava livremente. As minhas mensagens eram codificadas em rabiscos e desenhos de casinhas no alto da montanha”, conta.
Dessa época, o artista recorda de um episódio que lhe deixou cicatrizes profundas. “Eu havia acabado de receber a notícia de que uma pessoa próxima teve uma experiência de tentativa de suicídio e, ao chegar à escola, fui recebido por um ‘corredor polonês’ no qual diversos meninos da minha idade gritavam ‘viado, viado, viado”, conta.
Segundo Wilame, não havia nenhuma relação causal entre os dois fatos, mas anos depois percebeu que, em razão de ser quem era, nunca teve muito tempo para processar lutos. “Esse acontecimento me marcou bastante também porque foi a partir daí que eu comecei a sentir cada vez mais medo de ir à escola, o que contribuiu mais ainda para o meu isolamento”, conta.
O nomadismo é um outro aspecto que pode ser considerado definidor para a história de Wilame. Assim que terminou a faculdade de jornalismo, em 2005, o artista visual começou a se deslocar geograficamente.
“Eu achei que Aracaju estava ficando pequena demais e que se eu quisesse explorar mais minha identidade eu precisava ir embora”, relata. Inicialmente, Wilame viajou à Curitiba com a “cara e a coragem”. Sem conseguir emprego, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde conheceu um amigo, que seria fundamental para se tornar um artista.
Após sofrer um assédio de seu chefe, Wilame voltou à Curitiba para trabalhar em uma agência de telemarketing. Na volta à capital paranaense, deparou-se pela primeira vez com a expressão aberta de xenofobia, racismo e homofobia.
“No trabalho, pediram para que eu tomasse cuidado por ser negro, gay e nordestino”, conta. “Na época, eu não me considerava uma pessoa negra. O letramento racial nunca fez parte da minha vida até então e, no nordeste, eu era tido como ‘moreno’”.
Não à toa, na primeira oportunida de que teve transferiu-se para São Paulo (SP). Na capital paulista, vivenciou de forma mais profunda sua sexualidade e conheceu seu marido, um engenheiro de nacionalidade francesa. Uma paixão avassaladora. “Nós nos conhecemos em outubro de 2010. No começo de 2011, já estávamos morando juntos na Suíça”, diz.
A experiência da imigração já estava assimilada na rotina de Wilame, afinal mudar-se do Nordeste para Sul do Brasil é por vezes, segundo o artista, como estar fora do próprio país, haja vista as diferenças entre as regiões. “Contudo, na Suíça, eu passei pela grande imigração, ao apartar-me totalmente da minha terra”, diz.
Em solo estrangeiro, ele sentiu mais fortemente o preconceito sofrido por algumas “categorias de estrangeiros”, para os quais, conforme uma amiga, havia apenas duas opções de emprego no país: garçom e empregada doméstica. Wilame percebeu também, na ocasião, o tamanho de seu privilégio, pois, por ser casado com um europeu, havia à sua disposição um leque mais variado de opções de trabalho.
Assim, o artista visual enveredou-se por outras áreas. Fez um curso de tecnologia da informação e trabalhou na Nestlé. Posteriormente, em 2015, foi transferido para a filial brasileira da empresa, pois quis acompanhar o marido em mais uma mudança por causa do trabalho. “Nessa época, mais consciente de minha força, sabedor dos direitos que possuía como ser humano, resolvi, com meu marido, adotar uma criança.”
Após vencerem o medo por questões introjetadas pela sociedade, entraram com um processo de adoção que foi concluído entre o final de 2017 e começo de 2018. Logo depois, já com a guarda da filha, que na época estava prestes a completar 12 anos de idade, mudaram-se para a Áustria.
Em 2019, Wilame descobriu que seu amigo – com quem havia dividido moradia no Rio de Janeiro logo após terminar a faculdade e com quem mantivera contato desde então – havia sido assassinado em Sāo Paulo por motivações homofóbicas.
“Comecei um processo de crise de pânico, que me impossibilitou de sequer ver a foto do meu amigo por dois ou três anos”, conta. O processo foi agravado em razão da pandemia e por mais uma mudança, desta vez para a Flórida, lugar pelo qual não teve uma boa primeira impressão.
Foi nos Estados Unidos, porém, que o artista fez seu letramento racial e de gênero e compreendeu-se melhor enquanto homem de pele racializada (negro de pele clara) e gay fora do padrão.
Ao procurar a terapia, Wilame foi incentivado a se explorar e deu início ao processo de sua formação enquanto artista. “Comecei desenhando, tal qual eu fazia quando era criança, depois fiz fotocolagens e até mesmo experiências com inteligência artificial, mas descobri que a melhor forma de me manifestar é através de fotografias”, relata.
Para dar um apuro técnico à sua criatividade, matriculou-se para cursar fotografia na The New School, em Nova York. O seu projeto de conclusão de curso, intitulado “Drag Queen” foi uma homenagem ao seu amigo assassinado. Neles destacam-se dois autorretratos: “O tiro” e “Desencarnado”, que farão parte da primeira exposição de sua obra, a ser realizada na Galeria Azur, situada em Berlim, na Alemanha.
Depois desse projeto, o artista embrenhou-se por um caminho mais intimista, buscando se entender melhor como pessoa.
Dessa fase, destaque para dois projetos: “Pintura de Guerra”, baseado naquilo que já ouviu das pessoas por ser gay, racializado e nordestino, em que mistura fotos e a escrita; e “Tudo que tem luz”, em que queima uma fotografia híbrida de seu rosto, coberta de purpurina, como forma de marcar uma mudança drástica em sua trajetória. “Nele, reconheço o meu brilho; consumido por esse calor que me move preciso queimar”, conclui.
Sobre o artista
Wilame Lima é formado em Comunicação Social e Jornalismo pela Universidade Federal de Sergipe, e pós-graduado em Ciência de Dados pela Faculdade de Administração e Informática Paulista.
Em sua passagem pelas artes visuais, explorou a ilustração de imagens, a fotografia em filme e a produção de imagens sintéticas com inteligência artificial. Atualmente, se dedica à fotografia digital, ao autorretrato e à fotografia identitária.