O ano em que o Brasil ‘sentiu’ as mudanças climáticas
Imagens: NOAA
Tempestades, ciclones, ondas de calor, seca e incêndios florestais ampliam a preocupação da população com o futuro do planeta
EcoDebate – Com mais uma onda de calor em boa parte do país, a sensação térmica de 60ºC em algumas regiões e alertas de chuvas e tempestades no Sul, 2023 chega ao fim revelando tempos climáticos extremos. Segundo a Organização Meteorológica Mundial, este ano deve ser confirmado como o mais quente em 125 mil anos, superando em 1,4ºC os níveis pré-industriais.
“Podemos dizer que o brasileiro ‘descobriu’ as mudanças climáticas neste ano. Com tantas tragédias provocadas por chuvas intensas, ondas de calor, incêndios florestais e secas intensas, as pessoas estão mais conscientes de que a mudança do clima é uma realidade e que precisamos olhar para a natureza com muito mais atenção”, analisa o economista Carlos Eduardo Young, membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN) e professor titular e coordenador do Grupo de Economia do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (GEMA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
De acordo com a Defesa Civil Nacional, mais da metade dos 5.568 municípios brasileiros foi afetada por fenômenos climáticos extremos no Brasil em 2023. Ao longo do ano, 2.797 municípios decretaram estado de emergência ou de calamidade por causa de desastres naturais.
“A natureza está dando muitos sinais de que as coisas não estão bem. E, infelizmente, essas situações vão ficar cada vez mais comuns nos próximos anos. É preciso agir rapidamente para mudar o sentido dessa história”, alerta Rafael Loyola, também membro da RECN e diretor executivo do Instituto Internacional para a Sustentabilidade (ISS).
Pesquisa revela preocupação da população
Apresentada durante a 28ª Conferência do Clima das Nações Unidas (COP28), em dezembro, a pesquisa “Natureza e Cidades: a relação dos brasileiros com as mudanças climáticas”, confirmou que o assunto está em alta.
Sete em cada dez entrevistados percebem que eventos climáticos extremos como tempestades, vendavais, estiagens e ondas de calor estão se agravando; e 80% da população se preocupa com as mudanças do clima.
A pesquisa também apontou que 76% das pessoas consideram que a estrutura das cidades não está preparada para chuvas fortes. A pesquisa completa, realizada pela Fundação Grupo Boticário em parceria com a UNESCO no Brasil, a ANAMMA e a Aliança Bioconexão Urbana, pode ser vista aqui.
Confira fatos marcantes do ano:
Política ambiental ganha força
O ano começou com mudanças na política ambiental a partir da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
“Além do retorno ao Ministério do Meio Ambiente de uma pessoa muito identificada com a pauta ambiental, a ministra Marina Silva, a troca de governo representou uma saudável ruptura em relação ao governo anterior. Como pesquisadores, podemos ter várias críticas e discordâncias com a atual gestão, mas precisamos reconhecer que houve muitos avanços em comparação aos últimos quatro anos”, afirma Reuber Brandão, membro da RECN e professor de Manejo de Fauna e de Áreas Silvestres na Universidade de Brasília (UnB).
O Governo Federal apostou principalmente no fortalecimento dos órgãos de controle para reduzir o desmatamento ilegal, principalmente na Amazônia, além de buscar apoio de países desenvolvidos para angariar recursos para iniciativas ambientais, como o Fundo Amazônia, paralisado no governo anterior.
COP28: combustíveis fósseis em xeque
A aguardada COP28 reforçou a necessidade de uma transição energética, sinalizando o início do fim dos combustíveis fósseis. O texto final indica que as emissões globais de gases de efeito estufa (GEE) devem alcançar a neutralidade em 2050 (net zero), e determina que no final do século a elevação média da temperatura global não deve ultrapassar o limite de aumento de 1,5°C em relação à temperatura média do período pré-industrial.
“É um resultado histórico, pois foi a primeira vez que todos os países concordaram em formalizar essa mensagem forte e clara para que o mundo se afaste cada vez mais dos combustíveis fósseis, responsáveis por mais de 2/3 das emissões globais de GEE”, analisa André Ferretti, membro da RECN e gerente de Economia da Biodiversidade da Fundação Grupo Boticário.
Para o especialista, o grande desafio agora é transformar a mensagem política em ação prática e, de fato, reduzir o uso desses combustíveis. “Sabemos que é necessário abandonar o uso desse tipo de combustível o quanto antes, o que vai exigir gigantescos investimentos e inovações. Isso precisa ser feito com equidade e justiça social”, completa.
Para Marcia Marques, membro da RECN e professora de Ecologia e Conservação da Universidade Federal do Paraná (UFPR), nenhuma medida efetiva de combate às mudanças climáticas terá sucesso sem políticas que garantam a diminuição abrupta das emissões de gases do efeito estufa.
“Ainda não sabemos exatamente em que medida a COP28, ocorrida no território que guarda uma das maiores reservas de petróleo no mundo, e com participação massiva de setores da sociedade altamente poluentes, conseguirá guiar uma rápida transição energética”, questiona.
Brasil na COP28: entre avanços e retrocessos
Para a professora da UFPR, a posição do Brasil na COP28 foi contraditória. “Ao mesmo tempo em que concordou com a transição energética, o país estreitou relações com os maiores produtores de petróleo do mundo, com a adesão à OPEP+, e anunciou a abertura de leilão para exploração de 400 blocos de petróleo. Os blocos incluem áreas altamente sensíveis como os arquipélagos de Fernando de Noronha e Abrolhos, terras indígenas e reservas”, destaca.
Os resultados da Conferência também foram avaliados de forma bastante crítica por Reuber Brandão. “A Conferência me lembra o choque do Titanic contra o iceberg que provocou seu naufrágio. O navio bateu no imenso bloco de gelo porque simplesmente não deu tempo para mudar o rumo do maquinário que o impulsionava. Os cientistas estão gritando há tempos: olhem o iceberg. Mas falta empenho para a mudança de rumo desse maquinário sedento de óleo.”, analisa o pesquisador da UnB.
Menos desmatamento na Amazônia
Talvez a melhor notícia na área ambiental seja a queda sensível no desmatamento da Amazônia. Os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) apontam redução de 50% da perda de vegetação no bioma de janeiro a outubro.
“Estamos na direção correta. Possivelmente, o desmatamento vai continuar caindo em 2024 e nos anos seguintes. Vale lembrar que o Brasil tem a meta de zerar o desmatamento em toda a região amazônica até 2030 e precisa dar sinais firmes de que vai alcançar esse objetivo”, afirma Carlos Nobre, membro da RECN e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP).
Nobre estima que mais de 90% da devastação na Amazônia seja ilegal. “Uma ação efetiva de combate à ilegalidade e à criminalidade, como grilagem de terra, mineração em terras indígenas e extração de madeira, traz resultados de forma rápida. Quando há uma combinação de iniciativas do Governo Federal e dos governos estaduais, como ocorreu neste ano, a tendência é de seguirmos no bom caminho”, frisa Nobre.
Mais desmatamento no Cerrado
Ao contrário do que foi registrado na Amazônia, o desmatamento no Cerrado seguiu avançando em 2023. De acordo com dados do Inpe, o aumento no ano foi de 20% em comparação a 2022.
A perda da cobertura vegetal no Cerrado, no entanto, tem uma dinâmica diferente da Amazônia. A maior parte da transformação do território é legal e está ligada à expansão da fronteira agrícola.
“Como a área de reserva legal no Cerrado é só de 20% do tamanho das propriedades, chegando a 35% na área de transição entre esse bioma e a Amazônia, ainda existe espaço legal para essa expansão das áreas para o agronegócio”, explica Nobre.
O pesquisador da USP defende o aumento no investimento em uma agropecuária regenerativa.
“Ainda estamos longe desse caminho. Basta ver que a agricultura de baixo carbono ocupa uma parcela pequena das áreas agrícolas no país e fica com uma reduzida fatia do financiamento público em comparação com a produção agropecuária convencional. Infelizmente, ainda existe negacionismo climático em setores do agronegócio”, analisa Nobre, um dos climatologistas mais respeitados do Brasil, que também é pesquisador aposentado do INPE.
Para Rafael Loyola, o poder público e os setores produtivos devem encontrar maneiras de manter a vegetação preservada no Cerrado. “Nesse caso, não basta aumentar a fiscalização dos órgãos de controle. Será necessário desenvolver propostas inovadoras em conjunto com a comunidade e os proprietários de terra, além de mecanismos financeiros para incentivar o uso sustentável das áreas que possuem vegetação nativa”, afirma.
Chuva recorde e deslizamentos no litoral norte de São Paulo
Logo nos primeiros dias de 2023, inundações em Araraquara, no interior de São Paulo, causaram a morte de cinco pessoas.
Poucos dias depois, o litoral norte do Estado registrou recorde histórico de 683 milímetros de chuva em 24 horas, o maior volume já apontado no país neste intervalo de tempo, de acordo com o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).
O temporal sem precedentes provocou 65 mortes, sendo 64 em São Sebastião e uma em Ubatuba, além de milhares de desabrigados nas cidades da região.
Ciclones Extratropicais no Sul
A região Sul enfrentou uma sequência de ciclones extratropicais no ano, com saldo de 64 mortes e mais de 100 municípios afetados, sobretudo no Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
A situação mais grave ocorreu em setembro, quando intempéries climáticas no Vale do Taquari, região central do Rio Grande do Sul, provocaram destelhamentos de casas, quedas de árvores, destruição de pontes e de estradas, no maior desastre natural dos últimos 40 anos no Estado.
Seca na Região Norte
Enquanto a chuva provocou estragos no Sul, na região Norte a população enfrentou uma forte seca. Mais de 100 municípios do Acre, Amazonas e Pará decretaram situação de emergência devido à estiagem, em uma crise hídrica que foi considerada a pior dos últimos 43 anos na região, conforme avaliação do Cemadem.
“A chegada do fenômeno El Niño, associada com as mudanças climáticas, trouxe níveis assustadores de seca na região. Níveis jamais vistos de baixa nos principais rios amazônicos, em particular o Rio Negro, que atingiu níveis recordes, impedindo a navegação, com consequências gravíssimas para as comunidades ribeirinhas”, salienta Carlos Eduardo Young.
Além dos impactos sociais e econômicos, a estiagem provocou a morte de milhares de peixes e dezenas de botos no Rio Negro Em novembro, apenas no município de Coari, a 360 quilômetros de Manaus, mais de 70 carcaças de botos foram encontradas nas margens do Rio Solimões.
Incêndios recordes no Pantanal
No Pantanal, os incêndios voltaram a provocar grandes transtornos e perdas para a biodiversidade. Em outubro e novembro, as chamas consumiram mais de 1 milhão de hectares no bioma, o triplo do que foi registrado em 2022, sendo considerada a maior área queimada no mês de novembro nos últimos 21 anos.
De acordo com especialistas, o fenômeno El Niño foi o principal agravante para a expansão dos incêndios, associado a fenômenos naturais, como raios, além de chamas causadas pelo homem.
“O Pantanal também sofre impactos de atividades agrícolas que degradam o solo e interferem na dinâmica das cheias, além do fogo criminoso, que mais uma vez atingiu a região”, ressalta Márcia Marques.
Um alívio na Mata Atlântica
Na Mata Atlântica, outro bioma bastante ameaçado no Brasil, o ano termina com sensação de alívio.
De acordo com o Sistema de Alertas de Desmatamento (SAD) Mata Atlântica, nos primeiros oito meses do ano houve redução de 59% na área desmatada em comparação a 2022. A queda nos índices foi observada em todos os 15 Estados que compõem o bioma.
“É uma boa notícia, sem dúvidas, mas é importante lembrar que neste ano houve tentativa de mudar a Lei da Mata Atlântica no Congresso Nacional, numa ação que visava fragilizar a conservação das áreas naturais remanescentes. Dúvidas ainda pairam no ar sobre a possibilidade de novas investidas”, salienta Marques.
Ameaças ao oceano
A temperatura média da superfície dos oceanos também atingiu um recorde em 2023. O Copernicus Climate Change Service (C3S), serviço de informação climática da União Europeia, registrou a marca de 20,96°C no dia 30 de julho, a mais alta temperatura média da história, superando a marca de 2016, quando atingiu 20,95ºC.
“Isso é bastante preocupante, pois o oceano é um grande regulador do clima, que absorve calor da atmosfera e produz mais da metade do oxigênio que respiramos”, observa André Ferretti.
O aquecimento das águas dos mares, associado a outras práticas e usos insustentáveis de recursos, tem provocado grande preocupação com a conservação de ecossistemas costeiros e marinhos.
Estudos da Fundação Grupo Boticário
Relacionados à sustentabilidade do oceano, a Fundação Grupo Boticário lançou neste ano duas publicações.
Em outubro, o estudo de valoração “Oceano sem mistérios: desvendando os recifes de corais”, revelou que esses ecossistemas geram até R$ 167 bilhões ao Brasil em serviços de proteção costeira e turismo.
Já em dezembro, na COP28, a Fundação, em parceria com Aliança Brasileira pela Cultura Oceânica, lançou o e-book “Oceano sem mistérios: construindo cidades azuis”, com soluções para tornar as cidades mais sustentáveis em temas como educação, economia, turismo, resiliência climática, água e saneamento, saúde e conservação dos ecossistemas.
No Dia Mundial das Cidades, 31 de outubro, a Fundação lançou, em parceria com a UNESCO no Brasil, com apoio da ANAMMA e da Aliança Bioconexão Urbana, o e-book “Cidades do Futuro”, um material com informações práticas sobre como a natureza pode ser parte da solução dos desafios urbanos.
Traz o conceito de SBN, infográficos com as principais tipologias desse tipo de solução já aplicadas no Brasil e exemplos de projetos implementados, além de trazer uma lista de porta-vozes especialistas no tema.
Biodiversidade, mercado de carbono e negócios
O governo federal enviou neste ano ao Congresso Nacional um Projeto de Lei que regulamenta o crédito de carbono no Brasil. O texto, que deve ser avaliado por deputados e senadores em 2024, estabelece o mercado regulado de redução e sequestro de gases de efeito estufa, criando oportunidades para o fortalecimento de ações de conservação da natureza.
Também tem crescido o interesse por certificações de biodiversidade, que reconhecem empresas comprometidas com a proteção de diferentes formas de vida em seus territórios, gerando créditos de biodiversidade.
“Em meio a tantos desafios, estes mecanismos de certificação da biodiversidade seguem a mesma esteira dos créditos de carbono, que estão sendo cada vez mais populares e melhor definidos em políticas nacionais e internacionais”, analisa Marcia Marques, da UFPR.
Colapso da mina da Braskem em Maceió
Outro fato marcante do ano foi o rompimento de uma mina de extração de sal-gema da empresa petrolífera Braskem, em Maceió.
O colapso da mina, sob as águas da lagoa Mundaú, além de gerar grande impacto social para cerca de 5 mil famílias do bairro Mutange, que tiveram de deixar suas casas, ainda traz grandes riscos ambientais, como a formação de mais crateras na área urbana, que pode levar à contaminação do solo e da água.
“E ainda há pessoas que reclamam dos estudos de impacto, do licenciamento ambiental e das exigências de órgãos de controle perante atividades de mineração. Varremos o impacto ambiental para dentro do buraco”, analisa Brandão.
Marco Temporal e luta dos povos originários
Em dezembro, o Congresso Nacional derrubou os vetos presidenciais aos dispositivos da Lei nº 14.701, de 20 de outubro de 2023, restabelecendo a legitimidade do Marco Temporal para a demarcação de novas terras indígenas.
Caso prevaleça a tese jurídica defendida pelos deputados, com forte apoio da bancada ruralista, o povo indígena só poderia reivindicar direito sobre uma terra caso já estivesse ocupando o território antes do dia 5 de outubro de 1988, quando a Constituição Federal foi promulgada.
“Na contramão deste movimento de destruição da memória ancestral, Ailton Krenak, um dos maiores líderes indígenas e pensadores do país foi reconhecido com uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, o que nos dá esperança de dias melhores para o futuro”, finaliza Marcia Marques.
Sobre a Rede de Especialistas em Conservação da Natureza
A Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN) reúne cerca de 80 profissionais de todas as regiões do Brasil e alguns do exterior que trazem ao trabalho que desenvolvem a importância da conservação da natureza e da proteção da biodiversidade