Após a realização do Flitabira na praça do Centenário, vereador quer proibir eventos culturais próximos a igrejas e templos

Foto: Keven Willian

Por Carlos Cruz

Na contramão do que defendia o poeta brasileiro Castro Alves (1847-1871), que dizia ser a praça do povo, por que são espaços de liberdade, participação cultural e cidadania, o presidente da Câmara Municipal de Itabira, vereador Heraldo Noronha Rodrigues (PTB), apresentou projeto de lei que, se aprovado pelos vereadores e sancionado pelo prefeito, proíbe a realização de “eventos culturais ou esportivos públicos com distância inferior a 200 metros de qualquer templo de culto religioso.”

O projeto de lei ainda vai ser avaliado pela Comissão de Legislação e Justiça da Câmara Municipal de Itabira antes de ir a plenário para discussão e votação.

Se aprovado pelos vereadores e sancionado pelo prefeito, alterando o artigo 7º da lei municipal 5.158/19 (lei do silêncio), Itabira vai virar uma cidade onde praticamente não se terá espaço público para a realização de eventos culturais e espotivos em áreas abertas, por meio de uma vedação que irá ferir vários artigos da Constituição Federal, limitando-se os “espaços de liberdade e cultura.”

Isso porque, com a proliferação de igrejas e templos evangélicos pela cidade, vai ser difícil encontrar uma praça que não esteja impedida de receber eventos culturais e esportivos, caso esse projeto de lei vire lei municipal.

Idiossincrasia ou idiotice, se preferir

Não por acaso, o vereador entrou com o projeto dois dias após a realização da terceira edição do Festival Literário Internacional de Itabira (Flitabira), o maior evento cultural já ocorrido na cidade, reunindo mais de 40 escritores, atraindo a Itabira turistas de várias cidades para um encontro civilizado, literário, artístico e culto.

Nesse rol de pessoas interessadas na literatura e arte, poucos foram os vereadores itabiranos que passaram pela praça do Centenário, onde o Flitabira foi realizado. Deixaram de degustar do “biscoito fino” da literatura brasileira, numa grande festa de confraternização, interação cultural e de ancestralidade.

A praça do Centenário, onde o Flitabira foi realizado, fica a poucos metros da catedral, que manteve as suas atividades religiosas sem qualquer interferência do que ocorria no festival literário em sua programação religiosa.

Trata-se de um espaço onde historicamente ocorrem manifestações culturais, políticas e religiosas. É onde estão localizados o Museu de Itabira e a Casa de Drummond, além da catedral católica.

Foi respeitado inclusive o adro, onde no passado, no tempo do padre Lopão, “os homens ficavam do pirulito para fora e as mulheres do pirulito para dentro”, esse sim um espaço exclusivo da igreja, de seu uso privativo.

Espaços públicos censurados

Se estivesse em vigor o projeto de lei de Heraldo, a posse de Daniel de Grisolia, em 1960, na praça do Centenári, não teria ocorrido nesse local (Foto: acervo da família de Tobias/Vila de Utopia)

Se o projeto do vereador Heraldo Rodrigues for aprovado, ficam censuradas todas manifestações culturais, políticas e populares nesse espaço de cidadania que é a praça do Centenário, onde aconteceram os históricos comícios do ex-prefeito Daniel Jardim de Grisolia (1959-63 e 1967-70).

Essa interferência da religião na política itabirana pretendida pelo vereador fere princípios constitucionais, aqueles que asseguram a laicidade do Estado e a liberdade de expressão cultural em espaços públicos.

Pela vedação, caso o projeto seja aprovado, será impedida também manifestações culturais na praça Nelson Lima de Guimarães, a pracinha do Pará, por estar próxima da igreja evangélica que se instalou na antiga sede social do Valério. Como também não poderá acontecer eventos culturais na pracinha do Campestre.

Ou ainda, ficará também proibida qualquer manifestação cultural e esportiva na praça São Tomé, no bairro Major Lage de Baixo, outro espaço público de lazer e convivência, que está sendo reformado para voltar a ser palco de cultura e recreação. A praça está a poucos metros de uma igreja evangélica. Como também não poderão ser realizados os festejos e eventos culturais na praça em Ipoema, em frente à igreja Nossa Senhora da Conceição.

Se aprovado o projeto de lei da censura de eventos próximo a igrejas, não haverá mais manifestações culturais e esportivas na praça José Máximo Resende, no bairro Campestre

Lobby religioso

Ao tentar cercear as manifestações culturais e esportivas próximas a igrejas e templos, o presidente da Câmara dá um tiro no pé ao ceder ao lobby de padres e pastores que consideram a cultura como manifestação do Mefisto, como era o riso para a igreja na Idade Média.

E como é ainda a cultura uma manifestação demoníaca para muitos padres e pastores reacionários, conservadores e fundamentalistas que a veem como sendo incompatível com a religião, desconhecendo por certo o que está em um dos versículos dos Salmos 150:3.

“Louvai-o com o som de trombeta, louvai-o com o saltério e a harpa. Louvai-o com o adufe e a flauta, louvai-o com instrumento de cordas e com flautas. Louvai-o com os címbalos sonoros, louvai-o com címbalos altissonantes. Tudo quanto tem fôlego, louvai ao Senhor.”

Esse versículo mostra que o louvor a Deus deve ser feito com alegria, entusiasmo e harmonia. A trombeta representa a voz de Deus que anuncia a sua vontade e o seu poder. O saltério representa a dança que expressa gratidão e adoração a Deus.

A harpa representa a música que celebra a bondade e a beleza de Deus. Ou seja, trata-se de uma manifestação artística, cultural em louvação à vida e ao Criador.

Portanto, a cultura e a arte, com as suas diferentes formas de manifestações devem ser, portanto, entendidas também como uma manifestação de adoração a Deus para os cristãos – e nada elas têm de incompatível com a religião que não seja retrógada e cerceadora da liberdade individual e coletiva.

Justificativa esdrúxula

A justificativa para o projeto de censura dos espaços públicos para eventos culturais e esportivos próximos a igrejas e templos é simplória, totalmente desprovida de razoabilidade. Mas não é o que entende o vereador Heraldo Noronha.

“A realização de eventos pertos de templos religiosos consiste numa forma de empecilho, pois muitos atrapalham os fiéis das diferentes denominações devido ao barulho produzido que o impedem de ouvir e participar do evento religioso.”

Ora, é só restringir as manifestações culturais e esportivas para que não aconteçam nos horários pré-estabelecidos para as missas e cultos religiosos, ao invés de vetar esses espaços às manifestações culturais e esportivas.

Diz ainda o vereador “que o local utilizado para a festividade, no dia seguinte ao de sua realização, fica sujo, pois muitos participantes descartam no chão embalagens de comidas e bebidas, pontas de cigarros e até mesmo preservativos usados, sendo os fiéis dos templos obrigados a realizarem a limpeza e a lidarem com tamanha falta de respeito.”

Se o vereador Heraldo Noronha, ao redigir essa justificativa, estava se referindo ao Flitabira, errou de endereço. Isso certamente por não ter participado desse grande evento literário, onde não se viu um toco de cigarro, copos, latinhas de cerveja ou mesmo preservativos atirados ao chão.

Ao contrário, o que se viu foi um grande acontecimento literário como jamais se viu em Itabira, à altura da poesia do seu filho mais ilustre, Carlos Drummond de Andrade, na festa pelos seus 121 anos de nascimento.

Exclusividade

Além de pretender cercear a livre manifestação cultural em espaços públicos, que não deve sofrer interferências ou restrições religiosas, sob pena de ferir a Constituição Brasileira, o vereador quer ainda criar reserva desses espaços para as manifestações religiosas.

Foi o que disse o vereador Heraldo Noronha no espaço aberto para as manifestações dos edis na sessão legislativa de terça-feira (7), ao apresentar uma possível exceção ao que dispõe o seu projeto de lei.

Segundo ele, eventos culturais só poderão ocorrer próximos aos templos religiosos “caso a igreja autorize.” Ora, senhor vereador, a igreja não tem autoridade sobre o espaço público. Ela manda em seu espaço físico, que é restrito às suas manifestações religiosas.

Fora daí, não tem essa autoridade, a menos que o poder público, ferindo a Constituição Brasileira, outorgue-lhe esse poder muito além do que lhe foi concedido pelo “poder divino”.

Estado laico

O projeto de lei do vereador Heraldo Noronha é, pois, um acinte ao Estado laico, conforme está posto e definido pela Constituição Federal.

Se o vereador não sabe, em um Estado laico, as leis não devem ser fundamentadas em princípios religiosos para definir suas políticas públicas e valores, por estar acima das religiões, devendo se afastar de qualquer interferência religiosa.

O Estado laico assegura a liberdade de crença e de culto, mas também impede o cerceamento da liberdade de expressão cultural, o que pode – e deve ser exercido em espaços públicos, como são a praça do Centenário, as pracinhas do Pará, São Tomé, Campestre e tantas outras existentes na cidade que deveria ter mais praças e hortos florestais.

Pois antes de cercear essas manifestações em espaços públicos, “louvai-o ao som da trombeta; louvai-o com saltério e com harpa”, E não impedindo, em nome de Deus, ou do padre e do pastor que abominam a cultura, que o povo tome conta das praças e dos espaços públicos como lugares de manifestação popular, democraticamente.

Se acaso nesses eventos venham a ocorrer desvios de condutas (sic), que sejam organizados e delimitados, além de contar com banheiros públicos em número suficiente, para não ser cerceada a livre manifestação cultural, assim como católicos e evangélicos têm assegurados pelo Estado laico a sua liberdade religiosa.

Derrota acachapante

Que esse projeto de lei seja reprovado pelos vereadores, sob pena de Itabira virar chacota nacional, deixando de ser exemplo de cultura e poesia, como vem sendo, tratando bem a todos que aqui chegam para conhecer a terra natal do poeta maior com os seus caminhos drummondianos e atrativos culturais.

Foi o que os visitantes viram acontecer, com “toda ordem e civilidade” na terceira edição do Flitabira. Mas como a “mulher do padre”, poucos vereadores se serviram desse “biscoito fino” que em Itabira foi produzido com muito sucesso no festival literário, movimentando a sua economia, incrementando a indústria do turismo.

Se o vereador não sabe, é importante frisar que o seu projeto de lei, se aprovado, cerceia também o turismo na cidade, que gera empregos e oportunidades de negócios. Com a organização de eventos, contratação de artistas, infraestrutura, movimenta-se o setor hoteleiro e de serviços, além da indústria cultural.

No caso de o projeto ser aprovado pelos vereadores, o prefeito Marco Antônio Lage não deve ter dúvida: que seja vetado de imediato, em nome do Estado laico e das tradições culturais e políticas de Itabira, cidade que presa pelas liberdades e valorização da arte e cultura – e que podem conviver com a plena liberdade religiosa. Que assim seja, amém!

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