“É proibido roubar goiabas”
Antiga Casa Paroquial, hoje Museu do Tropeiro, Ipoema MG
Foto: Ascom/PMI Pesquisa: Cristina Silveira
O Adventício: Estrada Real. Santo Affonso da Aliança. Aliança. Ipoema
Em 1957, Ipoema era o silêncio, e as vozes do silêncio. Aliança!
Imagino agora: o plástico voando entre “baratas tomando Coca-Cola”, a latinha quicando no chão da história de um povo. Insensata gravidez. Dinheiro & Vírus. Deus é fiel!
Em 1957, em Ipoema não era proibido roubar goiabas estatais ou do vizinho.
A mineradora toma tudo, destrói tudo! Rogai por nós, Nossa Senhora de Aparecida!
(Cristininha de Ipoema)
Parati – Ouro Preto do estado do Rio, Zila Mamede
Terra de peixes e bananas – Onde se repetiu a história de Hemingway
Texto de Zila Mamede
Tudo começou em setembro do ano passado, quando o poeta Afonso Félix de Souza inventou de organizar uma excursão a Parati. Apresentou-nos (numa das famosas tardes de autógrafos da Livraria São José) ao poeta de Parati – José Kleber.
Decidimos ir: contistas Renard Perez e Samuel Rawet; crítico Fausto Cunha; escultor Sérgio Camargo; poetas José Kleber e Afonso Félix de Souza; mais alguns colegas e pessoas da família do Kleber. Houve antes uma porção de combinações e descombinações de viagem.
E o certo é que nos vimos, Kleber e eu, partindo sem mais ninguém num Maria Fumaça da Central, dia 2 de setembro. O resto do pessoal não acordou…
Até Mangaratiba pegamos uma ventania dos diabos. E meu medo maior era que ela continuasse quando tomássemos a barca que nos levaria a Parati.
Afinal, o resto da turma nos encontrou em Mangaratiba. Ali já estava a lancha de bananas do tio do Kleber nos esperando. Fizemos hora. Jantamos num botequim da praia. Zero hora do dia 3 embarcamos.
A viagem
Um grupo bem bom: 20 pessoas ao todo. Homens e mulheres. Tripulação. Família do Kleber. Deixamos Mangaratiba naquela zero hora de céu tão perto de nós. Silêncio do mar grande. Lucidez e claridade das estrelas nos dando uma comoção forte. E nos calamos. Ficamos apenas, nas primeiras horas de mar, contemplando, contemplando…
A lancha, sem qualquer conforto. Lancha de transporte de bananas. Chão de tabuas duro e inclinado. Não fosse a pratica que tem o carioca de fazer fins de semana, teríamos sofrido mais a viagem.
Mas, havia vez por outra, um pedaço de cobertor ou um travesseiro emprestado. E enquanto esperávamos nossa vez, contávamos as estrelas da madrugada próxima. Descobríamos recantos de céu. E em cada um de nós existia um místico, àquela hora.
Na hora do sol nascente
Se a noite em pleno mar, em barco descoberto, nos entonteceu um pouco, não nos tomamos de beleza, menos, quando a manhã veio. Perto da Ilha Grande é que o sol nos deu bom dia. E a primeira lembrança, a primeira ternura foi para o velho Graciliano.
Querido Graciliano Ramos. Prisão na Ilha Grande Memórias do Cárcere. Quantas manhãs daquelas ele deve ter previsto. Mas havia a Ilha Grande. O presídio. Dentro dele, Graciliano. A manhã somente lhe chegava por intuição…
Mas a brisa do mar na hora matinal reconfortou-nos do cansaço da noite indormida. E a visão da Ilha de Parati, lá dentro, encravada na montanha do Rio de um lado, de São Paulo do outro lado. Uma hora ainda estaríamos tomando café quente. Pão. Uma cama para o sono. Hotel na beira do mar. A placidez da Baia.
Chegada
Oito horas. Sol vivo. Fome em nós e sono nos olhos. Mas alegria na alma. Parati nos recebendo com sua carícia de brisa de mar. O Cais, “Cais de ostras e bananas” dos versos do Kleber. Cais de madeira. Ponte de madeira avançando mar a dentro. Toros de madeira. A gente tem a impressão que vai escapulir por entre as aberturas dos toros. As carrocinhas para levar nossas malas.
A cidade. E as torres seculares das igrejas. Biqueiras. Platibandas de azulejos. Velha Parati Colonial. Parati desprezada pelo governo. Parati que poderia ser um dos maiores centros de turismo do Brasil. Parati sem estradas. Sem transporte. Sem nada. Parati simplesmente Parati. Pura. Real. Bela. Exuberante na sua qualidade de baia escondida.
A cidade e o povo
Quem chega a Parati, tem logo a sensação de que jamais saiu de lá. O povo somos nós, de repente. A cidade toma de assalto nossa simpatia. Os barcos no cais. Os pescadores. A gente boa e simples. As bicicletas – único transporte urbano. Os velhos sobrados. O sobrado do avô do Kleber, onde as tias faziam bolo e ele os roubava.
A poesia do Kleber. Praia do Sonho. O Pontal. O rio partindo a cidade e acabando preguiçoso no mar. Festa de Nossa Senhora dos Remédios. E a cidade feita Veneza quando é maré alta. Em Parati é assim: na subida da maré as ruas enchem. E se pode andar de barco dentro delas. Uma beleza. Queria que vocês vissem.
As mulheres é que fazem a limpeza das ruas. Chapelões de palha cobrindo-lhes os cabelos. Arrancam a grama das pedras da rua. Das pedras seculares e lisas das ruas. Depois, tem o Forte. Há canhões velhos onde nos sentamos para roubar goiabas. Goiabas que são do Forte. Forte do governo, “É proibido roubar goiabas”.
Mas roubamos goiabas. Foi na goiabeira que Fausto Cunha deixou meus óculos: ele os segurava enquanto eu subia e lhe dava as frutas. Roubaram meus óculos. Pensaram que eram goiabas…
A cachaça
O sr. Prefeito tomou uma cachaça com a turma. Parati tem uma das maiores indústrias de cachaça do país. Cachaça boa, no falar dos entendidos, que de cachaça só sei o nome. Deve ser horrível de beber. Mas a cachaça de Parati dá apenas para o consumo interno. Como se bebe cachaça. Deus! Mas ninguém vê ninguém bêbado.
O que a gente vê são as igrejas. Belíssimas. E o povo rezando. As procissões e os santos com lindas joias antigas. Santos antigos. Santos que muita gente deve ter vontade de obter para suas coleções (Abelardo Rodrigues, se você visse, hein? Queria ver se você conseguia alguma coisa. Os Santos de Parati são guardados em caixa forte. Por causa dos colecionadores).
Ex-votos impressionantes. Vi uma xilogravura tão antiga, tão linda. Admira a resistência do material. Da cor. Uma menina morta (talvez a de algum Cornélio Penna antigo). Mas linda. Que vontade tive. Que tentação de roubar a menina morta. Mas Deus me deu um puxavento de orelhas. Não tive coragem…
Regresso
Mas quando demos fé, hora de voltar. Vida real do Rio nos chamando. Parati era o outro lado. O sonho. Que sonho dura muito pouco. E voltamos todos querendo fundar uma colônia de férias para escritores, em Parati.
Sérgio Camargo quis comprar o sobrado que pertenceu a D. Pedro I. Casa de veraneio da marquesa de Santos. Móveis de jacarandá. Móveis que valem um milhão de cruzeiros. Mas os móveis não se vendem. Só o sobrado, 50 mil cruzeiros. Barato.
Não sei se o Sérgio o comprou. Imagino Sérgio e Marie Louise naquele velho sobrado. Maria Louise, francesa, morando no velho sobrado de D. Pedro… Deve ser engraçado. Ela é tão delicada. Subindo e descendo as antigas escadarias.
Olhando desconfiada o porão. Mas estou falando do regresso, Fausto Cunha queria ficar. Ficar por causa do clima, do silêncio, da montanha, da praia, da cachaça. Fausto queria ficar em Parati. Mas não ficou. Não ficou ninguém. A não ser a própria cidade.
“O Vellho e o Mar”
Ser pescador em Parati. Pescar peixes e ostras. Pecar auroras. Receber o Sudoeste. Ventania que fere, quando se dana. Quebra os barcos amarrados no cais. Arrebenta tudo. Aí, apareceu o pescador e contou do peixe gigante que descobriu. Levou outro pescador e o filho de outro pescador. Mas o peixe era gigante. Monstro. Tiveram um medão. Voltaram.
O peixe era do tamanho do peixe de Hemingway. O velho e o mar. Todo mundo quis saber da história. E Renard Perez queria ficar para escrever O VELHO E O MAR. Seria muito mais bonito do que a novela do americano. Velho e mar brasileiros. Mar de Parati. Velho de Parati. Peixe de Parati.
Escritor do Rio Grande do Norte, morando no Rio e passeando em Parati. Deixamos tudo. Trouxemos as vivências de uma cidade velha. Cidade bonita e desconhecida. Cidade bonita e desconhecida. Cidade abandonada pelo Patrimônio.
Parati que nos deixa sentimentais e bobos diante de sua paisagem. Diante de suas belezas. Diante de sua arquitetura colonial, de seu mar colonial, de tudo de bom que é Parati. Diante do cais que vai ficando… Que já ficou, longe, longe… Chegamos.
[Diário de Pernambuco (PE), 4/8/1957. BN-Rio]