Calvário

Cemitério do Cruzeiro, Itabira, MG

Fotos: Carlos Cruz
Pesquisa: Cristina Silveira

Carlos Drummond de Andrade

Em cidades antigas do interior brasileiro, impressiona a grande cruz plantada no cemitério. Não é uma cruz como tantas outras, simplesmente cruz, que se destaque pelo tamanho. Eu diria antes que parece árvore. Uma estranha árvore, carregada não de folhas e flores, mas de objetos que aparentemente fossem colocados em desordem, embora simetricamente. Essa árvore é o Cruzeiro, o Calvário.

O menino que eu também fui impressionava-se profundamente com a cruz diferente, a que não faltavam, como decoração trágica e festiva, uma caveira e um galo. A caveira era facilmente compreensível, tratando-se de cemitério.

Mas, o galo? Que fazia o galo figurado no alto do madeiro, se em redor não havia ninguém para escutar-lhe o canto, anunciando o amanhecer e a necessidade de trabalhar? Um ou outro adulto, consultado por mim, explicava:

– É o galo de São Pedro. Antes que ele cantasse, São Pedro negou três vezes que conhecia Jesus.

Outro informante era mais sutil:

– Esse galo anuncia a ressureição de Cristo e a ressurreição da carne, para o Juízo Final.

A cruz do cemitério do Cruzeiro, em Itabira, foi “restaurada”, mas ficou só com o galo de São Pedro e o globo, sem as demais simbologias e objetos de tortura que Drummond menciona

Era difícil de compreender, e o galo mantinha-se em silêncio, no alto, dominando a cidade e visitado pelo vento. Os objetos dispostos nos braços e no tronco da cruz concentravam também um mistério que a curiosidade queria decifrar, mas que a sensibilidade talvez preferisse curtir, sem explicação.

Mais tarde, explicaram-me tudo. A caveira representa o crânio de Adão, o primeiro homem sobre a Terra, e sobre ele se ergue a árvore da salvação dos homens. A cruz, como eu suspeitava, é mesmo uma árvore em cujo tronco se operou o holocausto de Deus para que eles se redimissem.

A parte alta da cidadezinha, onde se construíra o cemitério, era nada menos que a colina rochosa, situada fora de portas de Jerusalém, onde foi crucificado o Salvador do Mundo. E a caveira tinha outra justificação. Aquele era o morro do Calvário, isto é do Gólgota, que em aramaico significa exatamente crânio, caveira.

Eu não estava em minha cidade natal, estava no Oriente, há mais de 1 mil 800 anos, presenciando, assustado, a crucificação do Nazareno, em lugar especialmente consagrado ao cumprimento da pena de morte e, portanto, à produção de caveiras. Imagem sinistra, que só o pensamento de ali também se consumar um mistério divino, tornava suportável.

A informação completou-se. No braço esquerdo da cruz pendurava-se a escada em que Cristo foi alçado para a imolação. Do outro lado, viam-se as varas da flagelação, inclusive a que tem o hissope embebido em fel ou vinagre (“então os soldados, ensopando no vinagre uma esponja, e atando-a a um hissope, chegaram-lha à boca”).

Elementos simbólicos, de uma crua objetividade, revelam as técnicas de tortura vigentes na época: não faltam nem os cravos nem o martelo para pregá-los através da carne da vítima, fixando-a na cruz. Nem as lanças que perfuram o flanco de Jesus, para se apurar se ele tinha realmente morrido, pelo derrame de sangue e de água. O título de Rei dos Judeus é exposto ironicamente ao alto, logo abaixo do galo, e acima da coroa de espinhos. Não falta mesmo a mão que esbofeteou o Rei.

O repertório da Paixão não se esgotou. Temos ainda o Santo Sudário; a Verônica; os dados com que os soldados tiraram à sorte a túnica inconsútil; o cálice de amargura, de que falou Jesus no Jardim das Oliveiras; uma figurinha que alguns supõem ser a Virgem Maria; e duas cabeças de anjos.

Assim era o meu cruzeiro, assim outros espalhados por aí, e que o tempo irá substituindo não sei por que formas de devoção piedosa, adaptadas ao sentimento moderno. Ou apenas suprimindo. A mim esse cruzeiro antigo interessa antes como teatro mudo, em que as coisas se dirigem à imaginação, pela carga dramática de grande violência visual.

Em Nova Jerusalém as cenas da Paixão tornam-se explicitas, e pouco resta a elaborar pelo espectador culto ou rustico. O calvário medieval, de que o nosso descende, tem esta faculdade detonante: provoca reação de tristeza, horror e piedade, sem que seja necessário mostrar ao vivo os episódios do julgamento e da execução da sentença.

A “igreja-espetáculo” tem nele uma de suas formulas mais eficazes de produzir emoção. Tinha. Porque os cruzeiros vão desaparecendo. E todos os dias vemos, pelo serviço fotográfico dos jornais e pelas imagens da televisão, as cenas atrozes de tortura e linchamento, que já não atingem um deus baixado à Terra, mas os próprios e indefesos habitantes deste planeta. Há inúmeros “calvários” fora dos Evangelhos.

 [Jornal do Brasil (RJ, 16/4/1981. BN-Rio]

 

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