Safado é o que se safa?

Imagem: óleo de Simeon Solomon (1864)

Por Rafael Rigolon

Nomes científicos – Em fevereiro deste ano, o cantor de MPB e filósofo contemporâneo Wesley Safadão, um expoente pensador da escola safadista, presenteou o mundo com mais uma safira da arte moderna. Junto ao poeta MC Ryan SP, Safadão interpretou a canção ‘Safado’, cujo estribilho assim se apresenta: “Pra iludir, eu tô pronto/ Quer me amar? Vem sabendo/ Safado por fora/ Safado por dentro”.

Safadão cantando um refrão safado sobre ser safado num ‘funk’ safado chamado ‘Safado’ é muuuita safadeza. Hehe, eu me safei dessa, mas não fui safado de descobrir a etimologia da safadagem. Afinal, o que ‘safado’ tem a ver com o verbo ‘safar’. Acompanhe-me nessa safadice!

Algumas páginas e blogues por aí andaram espalhando uma história muito interessante, porém inverídica sobre a origem da palavra ‘safado’.

A versão pseudoetimológica diz que ‘safado’, ou mais especificamente ‘safada’, vem da poetisa grega Safo de Lesbos, que viveu entre os séculos VII e VI a.C. na ilha de Lesbos, na Grécia. Safo falava de amor em seus poemas; formou um coral de mulheres e teve três discípulas.

Por tudo isso, apesar de ser casada com o comerciante Cércolas, ao longo da história, muito se especulou sobre sua sexualidade, dita homorromântica.

Por essa tamanha fama, ali por volta de 1870, o termo ‘lésbica’ (de Lesbos) e ‘sáfica’ (de Safo) passaram a ser empregados para designar as mulheres homossexuais. Até aqui, é tudo verdade; a enganação está em atribuir a Safo a etimologia do termo ‘safado’, que não tem nada a ver.

Na verdade, tudo começou há um tempo atrás na ilha do Sol na península Ibérica. A invasão muçulmana na região, durante a Idade Média, fez com que a língua árabe tivesse grande participação no vocabulário das línguas ibéricas. Nisso, o termo árabe ‘ʔazāḥa’, que significa ‘remover, retirar’, ficou como ‘[a]záḥ’ no árabe andaluz (do Sul da Espanha).

Ali por volta do século XII, o espanhol arcaico e o galego-português incorporam o verbo árabe em seus idiomas, escrito como ‘çafar’, o que gerou os atuais ‘safar’, em português’, e ‘zafar’ em galego e espanhol, todos com o mesmo sentido de ‘eliminar, desaparecer’.

Desde então, costumamos usar ‘safar-se’ para aquele que consegue se retirar (desaparecer) duma situação desagradável – como a de não ter ouvido determinada música de Carnaval.

Figura: ‘Safo e Erina no Jardim de Mitilene’, óleo de Simeon Solomon (1864), por FredLister/Redbubble (abr. 2023).

Maaas, o sentido de ‘desaparecer, retirar’ ficou mais popular, ao menos a partir do século XVI, quando referido ao desaparecimento da cor e do viço das roupas. No vestido velho, geralmente, o que se perdia, inclusive, era boa parte dos tecidos. Então, ‘safar’ passou a significar ‘gastar-se com o uso’.

Assim como uma vestimenta safada (desbotada) ou um objeto safado (gasto pelo uso) já eram entendidos como coisas ruins, que perderam a vivacidade, por extensão de sentido, passou-se a chamar ‘safado’ todo aquele que também perdeu algo – neste caso, a vergonha de seus atos censuráveis. O safado é um cínico.

No Brasil, a safadeza ficou bastante ligada a questões sexuais, como libertinagem (falta de moderação nos prazeres sexuais) e à obscenidade (o que fere o pudor). No entanto, dependendo do contexto, num tom mais eufêmico, ‘safado’ é tido como uma qualidade, podendo virar até nome de música ou de artista.

Bom, mas longe de mim repreender músicas mais safadeeenhas; cada um curte o que quer e está tudo certo. Safadeza mesmo é a turma que dissemina pseudoetimologias safadas como a ligada a Safo. É como se dissessem “Pra iludir, eu tô pronto!”. Aí, sim, é um safadismo imperdoável.

Referências: ‘Diccionario de lingua portuguesa’, por Antonio de Morais Silva (1813); e ‘Diccionario de la lengua española’, da ‘Real Academia Española’ (2022).

 

 

 

 

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