O papa, o bibliotecário e o espírito das roupas

O papa repreende as mulheres pelo exagero de suas modas – sua santidade acha os vestidos de hoje indecorosos – um batalhão sagrado para combater a indecência.

Roma, 28/10/1919 – A moda feminina teve hoje o seu mau quarto de hora no Vaticano. Recebendo em audiência uma delegação da União Católica Feminina, o papa Benedicto (Papa Bento XV) pronunciou com efeito uma pequena alocução que se poderia chamar mais propriamente talvez uma pequena catilinária contra a moda.

Eram deploráveis, disse o Santo Padre, os excessos a que ultimamente tem sido levada a paixão da moda, excessos tão contrários àquela modéstia e dignidade que deveria ser o mais formoso ornamento da mulher cristã.

Não andassem as mulheres tão esquecidas dessa verdade, e Sua Santidade estava convencido que nenhuma se teria jamais animado a usar os vestidos indecorosos que faziam hoje o desvairo do sexo feminino e com os quais não se pejavam de aproximar-se mesmo do altar de Deus.

O papa Benedicto exortava calorosamente as damas filiadas à União Católica Feminina (1910) a organizarem uma Liga, espécie de Batalhão Sagrado para dar combate às modas indecentes. Era preciso fazer uma propaganda pertinente e incessante.

Não devia uma boa mãe consentir que as filhas se deixassem seduzir pelas tentações de modas exageradas, mas cumpria-lhe refrear essas exigências dentro dos limites estritos da perfeita decência.

No tocante às senhoras casadas, quanto mais elevada for a sua categoria social, tanto mais estrito dever lhe corria de não tolerar nem receber visitas de amigas cuja paixão diabólica da moda lhes pudesse ofender o decoro e a modéstia.

Uma advertência oportuna valia às vezes por um conselho salutar e evitaria a repetição diabólica da moda lhes pudesse ofender o decoro e a modéstia. Uma advertência oportuna valia às vezes por um conselho salutar e evitaria a repetição das audácias e impertinências que ofendiam os direitos de uma hospitalidade bem entendida.

A reprovação não tardaria a chegar aos ouvidos de outras incautas pecadoras e estas não persistiriam – disse o Santo Padre com acento de perfeita sinceridade – em usar modas que tivesse condenado a virtuosa. [O Pharol, 30/10/1919. BN-Rio]

A Moda

Moda feminina nos anos 20

Por Bastos Tigre

Alguns ministros protestantes, encontram-se com o clero católico na encruzilhada da Moral que lhes é comum, lançaram condenação maior aos exageros da atual indumentária feminina.

Bastos-Tigre (1882-19570

Se apurarmos bem, chegaremos a verificar que todas as religiões, que, sobre a terra, se disputam o papel de guia único do caminho do céu, todos os credos, inclusive o dos incréus, acordam no considerar imodesta a moda de hoje, com a sua prodiga exibição de tecido molecular epidérmico.

Não posso negar razão a tanta gente boa, embora desgostando a gente melhor, a do sexo oposto; as é impossível que estejam errados censores, tão dispares em mil pontos de vista, e que neste se encontram acordes no gesto condenatório à pouca roupa das damas.

Apenas repugna-me adotar o nome com que batizam o pecado novo – se é que pecados podem ser batizados: imodéstia.

Porque imodéstia é sinônimo de vaidade e esta se traduz, nas mulheres, pelo abuso de estofos caros, pela demasia de fazendas que o tempo das Maintenon, das Montespan, das Pompadour, só em caudas, fofos e refolhos davam com que cobrir um corpo de exército.

A “melindrosa” e a “espantosa” modernas são bem diversas de suas pentavós, no capítulo da elegância; contentam-se com pouco, com pouquíssimo; são minimalistas em panos e babados; pouco teria a apurar o Fisco se lhes cobrasse sobre as “rendas”.

Será justo chamar-lhes imodestas?

Ao contrário; de invaidosas, chamá-las-ia eu, se me dessem habeas corpus para o neologismo.

Caricatura Bastos Tigres

Avaliando instintivamente – de que não é capaz o instinto feminino! – a deficiência de produção fabril “post-bellum”, a falta de matéria prima, as greves dos tecelões, a crise dos transportes e outras que tais decorrências da vitória da Civilização, a mulher quis … o … amargo que a serpente da guerra oferecera ao seu companheiro; reduziu-se, às avessas, a cena endêmica dos primeiros dias do mundo; e Eva de 1919 despojou-se de suas vestes, tanto quanto lhe permitem os preconceitos higiênicos, inexistentes em 4004 a.C.

De fato, o problema indumentária assim se apresenta hoje, em toda a sua clareza geométrica; trata-se de cobrir com a menor quantidade de estofo a máxima superfície do corpo feminino; ora, este é geometricamente irregular, para gaudio do nosso senso estético, que não suportaria a mulher cônica ou esférica; com dificuldade suportam-se algumas piramidais; e as cúbicas chegam a despertar o entusiasmo dos pintores cubistas.

São estes, porém, casos excepcionais, de degenerescência do bom senso, que é o senso comum, tão comum como um bom rapaz ou um pobre diabo.

Em regra geral, sendo beleza artística a assimetria, e não havendo arte-bela mais perfeita que a Mulher, são a variedade de diâmetro do tronco e dos membros, a diversidade de curvaturas, os côncavos, os convexos, os altos e os baixos, os cheios e os vazios, que fazem do corpo humano uma arte maravilhosa.

Refiro-me, já se deixa ver, ao humano-feminino, pois o outro foi um simples estudo, em barro, de que Jehovah apenas aproveitou uma costela.

E, já agora, agarro-me a essa costela para não naufragar no diluvio bíblico e poder voltar à tona do assunto.

Florence Parpart inventou a geladeira elétrica moderna em 1914

Cobrir com pouca fazenda essas encantadoras irregularidades não foi fácil empresa para as costureiras de Paris e outros magazins de moda.

De sorte que, por maior que fosse a perícia que demonstram, sempre muito ficou por cobrir, exposto aos raios solares, ao brilho das lâmpadas e aos botes da concupiscência.

É em virtude destes últimos – virtude adverbial – que se arrepelam os sacerdotes de todas as religiões, mas o pecado não está, propriamente, nas damas que se descobrem e sim nos homens que jogam “ao descoberto” olhares devassadores, para não escrever devassos, que é palavra feia e banalizada pelo número.

Não fosse a reprovável curiosidade masculina, no mirar e remirar nudezas, e os ministros e os bispos nada teriam a repontar, em português clássico, a ranzinzar, em brasileiro desclassificado.

Manifestação pelo direito ao voto feminino em 1910

Pouco se lhes daria que o sol, no periélio, mordesse a cútis de carmim, ou que as ferissem, com a resistência de uns tantos “ohms”, as luminosas setas do arco voltaico.

Mas é que os homens teimam em olhar, sem temor de que os taxem de mal-educados, indiscretos, tolos e mais despidos de senso estético que as senhoras de linhos.

Foi ainda há bem pouco dias que um velho, meu velho amigo, respeitável por muitos títulos, inclusive os da dívida pública, me disse a tal proposito, ao sairmos ambos, eu com frack, amarrotado, do Instituto Histórico e Geográfico.

(Esse detalhe do frack, citei-o para repetir a mim mesmo a lição de que não há, à noite, como a cama da gente).

Dizia-me o velho amigo, conselheiro de antanho:

– Estes moços não sabem que há muito mais encanto no que “apenas” se imagina, do que naquilo que “de fato” se vê.

Concordei, porque respeito a velhice institucional e histórica, mas não evitei observar-lhe, com a devida vênia:

– Conselheiro, mas elas deixam tão pouco para imaginar-se…

Ele fez um gesto de lábios e de ombros que não dizia sim nem não. Compreendi lhe a dubiedade porque ele é míope e não vai a bailes desde o da ilha Fiscal.

Caso é que já não creio que haja sermões ou encíclicas capazes de fazer voltar a moda às mangas-balão de que dizia Arthur Azevedo que, em cada uma das de pano, cabiam vinte da Bahia; nem às saias de cauda, prestimosas auxiliares da Limpeza Pública.

Quanto ao fenômeno da alta nas saias cabe a maior responsabilidade à higiene com a sua inopinada incursão na Bolsa da Moda. Foi ela que, tornando a teoria microbiana mais elástica que a consciência de um político, foi, a pouco e pouco, levando as senhoras a subir com as bainhas ao contato pestifero do asfalto, levando-as à altura do tornozelo, daí ao nível da meia canela, em seguida à altura de um princípio, com tendências para a alta.

Que virá depois? Terão as Ligas pró-Moralidade prestígio bastante para clamar o “on n’y passe pas”? Irão as Ligas até às saias? Ou irão as saias até as ligas?

Quem nos poderá revelar o futuro?

O futuro que nos poderá revelar?

Fique, porém, claro e definido o meu pensamento neste ponto particular que considero a Moda de hoje a resultante de componentes várias, entre as quais a crise manufatureira dos tecidos e a teoria microbiana.

Julgo descompassado e desarrazoado intrometer a Moral no assunto vertente.

A Moral é tudo que há de mais relativo neste mundo em que tudo é relativamente imoral.

Eu, que detesto as citações, mesmo em juízo, citei Augusto Comte, juro que sem querer.

Disse ele, com sisudez filosófica, verde e profunda:

– Tudo é relativo. Eis o absoluto.

O Bom Homem Ricardo já tinha dito em frase rasa e chã como a evidência:

– Não há regra sem exceção. Pois Augusto e Ricardo têm na Moral o melhor argumento em favor de suas gêmeas doutrinas.

Moda feminina no início do século 20

A Moral é o Relativo-Absoluto; é a Regra furada de exceções, como o é de malhas uma rede de pesca.

Em matéria de nudezes – a que ora nos preocupa – vemos ser moralismo o nu artístico e super-sem-vergonha o nu-nu, o nu despido de qualquer adjetivo; vemos as senhoras ocultarem, em casa, pela manhã, uma polegada quadrada de epiderme, para logo, à noite, no teatro ou no baile, exibirem dois pés quadrados e duas pernas roliças.

E aí temos, num caso, a Moral função gramatical – mais ou menos adjetivo – e noutro a Moral – função horária – dependente da hora da função.

De sorte que o pai e o marido, consciente do seu papel de guarda-peles, têm que andar de relógio em punho ou no punho, como é de moda, a ver que superfície epidérmica poderá exibir a sua cara metade e o seu caríssimo rebento.

Situação que os aproxima, lamentavelmente, dos amantes da pinga, naquilo que lhes concerne, dentro do horário policial da bebedeira.

Moda masculina no início do século passado

Ainda nos tempos da Pudicícia, das golas afogadas, ou afogantes, e das saias varredeiras, sempre se exibiram à farta, em bailes aristocráticos, os fartos colos desnudos.

Foi Richelieu – e se não foi ele que me perdoe a calunia, lá da Santa Glória a que fez jus – que, por fitar com impertinência certa condessa decotada, ouviu dela esta frase desconcertante:

– Vejo, cardeal, que está a admirar a minha cruz.

(Ela trazia no colo um crucifico de pérolas, presente de um judeu. É histórico).

E o cardeal, que se não desconcertava das potências:

– Não, condensa, por ora observo o Calvário…

Hoje o decote é para a luz meridiana; logo, à noite, é … é o – não ser.

Moda feminina desautorizada pelo papa

E é por isso que muito atrapalhado fiquei, quando certa senhora de minha estima me veio indagar qual a “toilette” que trazia uma sua rival, em boas e poucas roupas, que dera de ser meu vis-à-vis no último banquete do ministro Eslovaco.

Não lhe pude responder senão que não sabia, pois tudo quanto a sua rival trazia de roupa ficara sob a mesa; e não foi educação que meus pais me deram andar a espreitar por debaixo dos móveis.

Ela mordicou os lábios, com grande inveja dos meus dentes, e sussurrou, pensando em sua próxima “toilette”: – E que olhasse! Só lhe veria as meias …

E os Calvários ainda hoje por aí andam a perder cristãos e judeus. Naturalmente, com a néo-salvação da Terra Santa, com “Jerusalém Libertada” pelos ingleses, tem o Golgotha avenidas novas, expande-se em bairros circunvizinhos, com bosques pitorescos.Concluo, em suma, que contra a moda não há resistência nem argumentos. É o determinismo. Tem de ser ou … de não ser.

Por mais que diminuam, as roupas não chegarão a desaparecer completamente, para sossego da rue de la Paix e da paz de todas as ruas do universo.

A moda sintética é assintótica – tende para o nada sem jamais atingi-lo.

E, afinal, pensando bem, não temos, os homens, razões para tanto escândalo. Nós nos vestimos muito menos que as mulheres, expondo imperfeições ridículas que os antigos, mais sábios e mais estetas, cobriam com as suas amplas e lindas túnicas. [O Pharol, 14/12/1919. BN-Rio. Pesquisa: Cristina Silveira]

 

 

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