Áporo itabirano

Foto: Acervo Júlia Peregrino

A Vila de Utopia apresenta ao leitor(a) trechos do livro Áporo itabirano: Epistolografia à beira do acaso, do esplendoroso Hermínio Bello de Carvalho.

Hermínio, como o Drummond, é poeta. E como o mestre Pixinguinha é compositor, e, sobretudo, foi o cara que deu luz cultural à minha geração e à todas que viram o resultado de seu trabalho na Funarte.

Pessoalmente agradeço engrandecida ao Hermínio, o pai de dona Clementina de Jesus, a mãe do Brasil (Bethe Carvalho). Saravá Hermínio, grandeza do Brasil!

O Áporo Itabirano, do Hermínio, compra-se na Livraria e Edições Folha Seca, dirigida pelo livreiro Rodrigo Ferrari, instalada na imperial rua do Ouvidor, n. 37, no centro do Rio Antigo. (Cristina Silveira)

Por Hermínio Bello de Carvalho

Foi mais ou menos há 10 anos que pensei em fazer um livro sobre Drummond, tomando como base as cartas que a ele enviei e que dele merecera resposta. Mas não tinha em mãos material suficiente, porque boa parte do que seria a matéria-prima do trabalho havia sido inconsequentemente deixada na Funarte – onde eu trabalhara no período de 1977 a 1990.

Período farto de projetos, aquele. E a maioria ligada ao registro, documentação e memória da nossa cultura – um vício adquirido nos ensinamentos de Mário de Andrade. E para alguns desses trabalhos procurei, e obtive, a cumplicidade do poeta.

Mais especificamente na edição de dois livros de um querido amigo comum, o grande Jota Efegê – ele e sua gravatinha brabuleta, aqueles cabelos indecorosamente brancos, de uma brancura de anúncios de sabão em pó. E, aliás, de uma saliência verbal sedutora, que logo tornava um namorado a quem se jura fidelidade eterna. Nossos namorados, dizíamos todos – homens e mulheres

Mas foi Drummond a pedra fundamental de um projeto comemorativo do nonagenário de Márioenorme.  Até Zé Bentinho, secretário do homenageado se deslocou para o Rio de Janeiro para recolocar a placa que indicava a sua passagem pelo prédio número 5 da rua Santo Amaro, ali quase ao lado da antiga Taberna da Glória.

Drummond, Cartola e dona Zica (Foto: Júlia Peregrino)

Antes de levar meus possíveis leitores ao apartamento do poeta Carlos Drummond de Andrade, em Copacabana, cabe contextualizar essa viagem regressiva aos meados da década de 1950 para que se alimente uma expectativa apropriada a respeito do conteúdo dessa epistolografia construída à beira do acaso – coisa que se esclarecerá mais adiante. Pois, tenho verdadeiro horror a qualquer tipo de propaganda enganosa.

Mais interessantes do que as cartas são o que as cerca, e o primeiro sinal terá sido quando Drummond, numa extensa entrevista concedida por ocasião de seus 80 anos aos jornalistas João Máximo, referiu-se literalmente a uma “contenda entre o Manuel Bandeira e o Hermínio Bello de Carvalho” – assunto que será tratado no devido momento.

Mas não se referiu, por exemplo, ao intermediador de seu primeiro contato com Tom Jobim, numa noite em que os alcoóis foram consumidos além do bom senso – mas que rendeu uma bela amizade entre os dois. Fui eu esse intermediador por meio de telefonema invasivo, já altas horas da noite – e já não era eu o menino que uma década antes lhe fizera a visita inicial.

É necessário esclarecer que a grandeza dos versos de Drummond, eu a bebia dos lábios de um pequeno grupo que frequentava a casa ateliê de Walter Wendhausen e Luís Canabrava na rua Dois de Dezembro. Eram, aqueles dois pintores, vizinhos de um outro mestre dos pincéis, o célebre Di Cavalcanti “que eu só iria conhecer pessoalmente em 1962, cumprindo mandado de Araci de Almeida”.

No meio do caminho tinha uma pedra, e nela tropecei, no dia em que, munido de uma enorme curiosidade, bati à porta do poeta itabirano, autor daquele poema então enigmático para mim: “Áporo”.

Fotogramas do programa Entre Amigos, exibido pela TV Educativa do Rio de Janeiro em maio de 1984, com Jota Efegê (Reprodução)

Lembro quando, anos depois, indo à casa de Di Cavalcanti, me deparei com um soberbo Pixinguinha a óleo, mas não estou certo que portasse sua flauta. Me recordo de sua sala, dos quadros na parede, da cozinha olorosa e dele debruçado na mesa terminando a capa de um disco que, por sugestão de Sérgio Porto, eu iria produzir com a já minha amiga Aracy de Almeida interpretando Cartola.

Sei também descrever, com minúcias, cada canto da casa de Nellie Lutcher em Los Angeles, quando a conheci em 1974 – ela, meu ídolo, e também de Walter Wendhausen, Caymmi, Fernando Sabino. Mas da casa do poeta itabirano, não guardei um detalhe sequer. Talvez porque ele fosse “a casa”.

Deu-me um livro, pediu que eu lesse um poema. De fato não o conhecia, tinha na ponta da língua o “caio verticalmente e me transforma em notícia” para qualquer emergência, o caso do vestido, o poema obstativo da pedra, a cantiga de viúvo – mas aquele “Áporo” definitivamente me pegara de surpresa. Sabendo-me confuso, porque era óbvia a minha total ignorância, ofereceu-me um dicionário.

Áporo – inseto himenóptero “que tem 4 asas membranosas e nuas como as abelhas, formiga etc”; problema difícil de resolver.

Foi assim o nosso encontro. Mais simples e difícil, impossível. Saí da colmeia. Passou-se um largo tempo até que voltasse a incomodá-lo.

Meu constrangimento era surpreender Drummond na fila do ponto, um desrespeito inadmissível que me fazia ziguezaguear pelos corredores até que ele cumprisse o ato formal e eu tomasse meu lugar na fila. Acho até que nem vínculo empregatício ele mantinha com a rádio, onde talvez funcionasse como colaborador remunerado. Não lhe conheço a história.

Costumo repetir o que me disse Oscar Niemeyer: a velhice é uma merda.

A memória que vai se apagando é armadilha que não se tolera. Diante do bilhete de agradecimento enviado ao Drummond (mal xerocado, talvez) – fico olhando a cópia manuscrita do “Áporo”, semente germinal deste livro. Veio em papel timbrado, sem dedicatória – mas o U inicial do primeiro verso desenhado, detalhado com capricho, na cor vermelha.

Jobim e Drummond, no clube Caiçaras, maio de 1973, Rio de Janeiro. Na sequência, Maria Julieta, dona Dolores, Drummond e Jobim no lançamento do livro O Valor da Vida, da filha escritora (Acervo; Jobim Music)

Imagino que o pedi como presente de aniversário ao Drummond, e a frase meio infeliz (“você fez a minha cabeça”) teima em se contrapor à sisudez espessa do itabirano ilustre, o que me leva a pensar numa outra hipótese.

Que não é lógica. Em nossos telefonemas, eu que, mais ouvia do que falava, devo ter lhe lembrado daquele encontro em data imprecisa e do rumo que deu à minha vida temperada então com dúvidas e sonhos mal rascunhados: a simples decifração que me deu ao me encaminhar ao dicionário para buscar a palavra “Áporo” foi como se abrisse outros compêndios na minha vida.

Abarrotasse um baú com mirro, incenso, barras de ouro, pérolas e bilhões de dólares (então nossa paramoeda) – e ainda assim minha retribuição seria a mínima, afirmaria mesmo que nenhuma, diante do presente que se o pedir ao Drummond, terá sido dado com carinho.

Esse que revela a caligrafia bonita, esse U desenhado com esmero – a lembrar ao antigo menino que é sempre necessário agradecer – ainda que o presente tenha sido solicitado, seja ele um adorno amarrotado do último carnaval ou mesmo um manuscrito como esse.

É quando eu lamento, e muito! Que Nelma e Drummond não tenham se encontrado.

Meu Drummond,

Um dia você fez a minha cabeça com o “Áporo”. Grato!!! Hermínio, 28/03/1979

[Áporo Itabirano: epistolografia à beira do acaso \ Hermínio Bello de Carvalho e Carlos Drummond de Carvalho – Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011]

 

 

 

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