De pandemia para endemia: o que altera com a mudança de nome

Este artigo visa fornecer informações sobre as autoridades envolvidas, os processos de decisão e as regulamentações internacionais que regem o processo de declaração do estado de pandemia

 Por Felix Christian Guimarães Santos*

EcoDebate – Em 3 de março, o presidente Bolsonaro declarou que o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, estudaria a transformação do estado de pandemia para estado de endemia no Brasil. Muitos especialistas ficaram estarrecidos com a falta de compreensão, por parte do governo federal, de como uma epidemia é avaliada para que possa vir a ser considerada uma pandemia.

Bolsonaro nem mesmo mostrou ter conhecimento de qual seria a autoridade responsável para declarar o estado de pandemia. Este artigo visa fornecer informações sobre as autoridades envolvidas nesta declaração, os processos de decisão e as regulamentações internacionais que regem o processo de declaração do estado de pandemia.

A imensa complexidade e intensidade dos trânsitos de pessoas e materiais entre os países fazem surgir a necessidade de tratados, que buscam estabelecer e regular padrões comuns de conduta, tanto para os procedimentos mais corriqueiros, quanto para a solução de crises e conflitos.

A área de saúde pública há mais de um século vem passando por um processo de desenvolvimento de uma governança global, envolvendo um número muito grande de países, interessados na regulamentação de um grande conjunto de atividades de coleta de informações, estudos científicos, organização de sistemas de saúde pública e de gerenciamento de possíveis crises de interesse internacional e que tenham potencial para afetar todas as relações comerciais e econômicas entre os países.

É neste contexto que entra a Organização Mundial de Saúde e suas regulamentações internacionais.

Em 1969 – e revisadas em 2005 – 196 países assinaram a IHR (sigla inglesa de Regulamentações da Saúde Internacional) no âmbito da Organização Mundial de Saúde e aceitaram que estas normas tivessem força de lei, vinculando os países signatários à determinadas obrigações.

Esta nova revisão da IHR, que entrou completamente em vigor em 2007, foi feita objetivando três eixos no gerenciamento de eventos críticos de saúde: (i) evitar que medidas unilaterais de alguns países pudessem prejudicar desnecessariamente o tráfego e comércio internacionais de outros durante eventos críticos de saúde pública; (ii) orientar para que todas as ações sejam realizadas seguindo bases científicas de conhecimento e (iii) evitar que direitos humanos sejam violados pelo isolamento econômico ou social ou pela falta de atendimento básico e de insumos. Uma nova revisão foi feita em 2009, definindo o que seria uma pandemia e as fases que levariam à sua declaração.

Desta forma, a IHR é um tratado destinado a produzir um sistema de governança global na área de saúde, que reafirma a OMS como autoridade pública internacional (IPA, sigla do termo em inglês), para atuar em várias situações, particularmente, nas emergências de saúde pública de interesse internacional (PHEIC, sigla do termo em inglês).

Para atuar nestas situações e chegar a declarar um estado de PHEIC, o diretor-geral da OMS considera um conjunto de fatores, incluindo a avaliação e opinião do Comitê de Emergência. Este comitê é composto por especialistas nomeados pelo pelo próprio diretor geral para atuar em um evento específico, como uma PHEIC.

Para avaliar um evento de saúde, a OMS emprega uma matriz de decisão com seis níveis, para estabelecer o seu estado de criticidade e intensidade. O último desses níveis é o que estabelece os critérios para se declarar uma PHEIC (estado de maior gravidade): além da satisfação dos cinco primeiros níveis, deve haver contágio comunitário confirmado e sustentado em mais de um país.

Baseado na extensão deste quadro, a OMS, através do seu diretor geral pode vir a declarar uma PHEIC como um estado de pandemia. Por exemplo, a declaração da pandemia provocada pelo SARS-CoV-2 foi feita em 11 de março de 2020, quando já havia a presença de contágio comunitário em 118 países.

A declaração foi precedida pela consideração desta epidemia como PHEIC em 30 de janeiro de 2020. Antes desta data, a OMS já havia declarado estado de pandemia inúmeras vezes, como em 2009, durante a epidemia do virus H1N1.

Portanto, a declaração do estado de pandemia não diz respeito a um país somente. Trata-se de uma avaliação basicamente técnica e muito complexa, envolvendo regulamentações internacionais reconhecidas por um grande número de países, assim como cientistas de várias regiões do globo.

A autoridade pública internacional reconhecida para declarar este estado é a OMS, através do seu diretor geral. Tanto a declaração de pandemia, quanto a do seu término, são atribuições do diretor geral da OMS, considerada como a IPA legitimamente constituída para tal.

Apesar dessas considerações, alguns países signatários do IHR, além do Brasil, estão atuando para rebaixar (dentro dos seus países) a epidemia (não de pandemia) de covid-19 para o estado de endemia. De uma forma simplista, endemia é a ocorrência frequente, dentro de determinados padrões, de uma doença em determinada região.

Essa atitude não é bem vista por cientistas em geral, porque é baseada mais em aspectos políticos do que científicos. Na maioria dos casos, significa a simples definição de um nível de intensidade de casos e óbitos, que a sociedade estaria disposta a aceitar.

A declaração de um governo rebaixando a epidemia para endemia não pode forçar, por si só, esse fenômeno natural (a epidemia de covid-19) a se transformar em uma endemia, ou seja, com sua incidência dentro de determinados níveis de intensidade e letalidade. Isso não é uma questão de vontade, mas de avaliação baseada em conhecimento científico reconhecido, levada a cabo pela autoridade internacional legitima, que é a OMS.

Além destes aspectos mais evidentes, é preciso entender que, enquanto a OMS mantiver a declaração de PHEIC para a covid-19, uma série de obrigações entre os países signatários ainda permanecem. Essas obrigações só terminam quando aquela declaração for retirada pelo diretor geral da OMS.

Tais obrigações dos estados signatários da IHR são um conjunto muito grande e complexo de atividades, que vão desde a obrigação de coletar e fornecer publicamente os dados da epidemia, até a participação em iniciativas como o desenvolvimento e distribuição de vacinas para prevenção e drogas para tratamento da covid-19.

Enquanto há países que conseguem arcar com as despesas do desenvolvimento, produção e distribuição dessas vacinas e drogas, muitos outros dependem das iniciativas da OMS para implementar o enfrentamento da pandemia.

Concluindo, a declaração de Bolsonaro é inócua do ponto de vista da pandemia, mas pode impactar fortemente as iniciativas que o governo brasileiro estará disposto a realizar, como, por exemplo, a coleta de informações e a vigilância sanitária adequada; investimentos no programa de vacinação e as recomendações e restrições que se fizerem necessárias para conter um novo surto de grandes proporções do SARS-CoV-2, fato esse ainda provável e não descartado pelos especialistas.

Como se não bastasse todo o descaso do governo Bolsonaro durante a pandemia, que fez do Brasil campeão mundial na incidência de óbitos, suas últimas declarações ainda podem levar os cidadãos a eliminarem todo o cuidado com a prevenção, expondo-os, mais uma vez, aos riscos associados à infecção pelo SARS-CoV-2.

*Felix Christian Guimarães Santos é professor associado da Universidade Federal de Pernambuco.

 

 

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