Causos da Cidadezinha
Ilustração: Dom Quixote, 1921
Entre revistas e jornais de grande circulação na praça carioca, no Norte e Nordeste do país havia uma conexão com a Cidadezinha através de correspondentes.
Esses correspondentes enviavam notícias sobre a mineração, política e sociedade (preferencialmente crimes).
Também as leitoras e leitores de Itabira se faziam presente diretamente participando de concursos ou daqueles divertimentos como charadas, palavras cruzadas….
E publicavam os “Causos”, em que Minas Gerais é reconhecida como a estrela Polar nesse tipo de literatura popular.
É a pujante cultura brasileira: No Nordeste a literatura de Cordel e Minas a literatura de Causos. Confira (Cristina Silveira)
Mal de nascença
Dadinho
Tal qual como no O Melro, de Guerra Junqueira, o velho pároco de Itabira do Matto Dentro.
Não tinha pombas brancas no telhado
Nem rosas no canteiro.
Era um velhote de 70 anos. Magro, alto, moreno puxado a café com leite (mais café do que leite), com a barba sempre por fazer, com a batina esverdeada e já no fio, que lhe dava pelos joelhos, deixando ver as calças de algodão.
Como a sua batina, a sua casa, de paredes esburacada, e os seus móveis, de cor horrivelmente duvidosa, uns pernetas outros cambaios, revelavam de pronto, aos olhos menos atentos, que os netos dos seus fabricantes já há muito dormiam o eterno sono sem sonhos no pequenino e florido cemitério da vila.
Dois bancos compridos, que lhe ladeavam a mesa de jantar, de tão lisos pelo seu uso, luziam mesmo na escuridão.
Além da hortaliça e de uma criação de galinhas, nada mais cultivava o nosso pároco. Não gostava de flores, por supérfluas.
Dizia sempre que o homem só precisa do necessário. Letras, além do breviário, já todo ilustrado com os sinais dos seus dedos, e da Gazeta de Notícias, que de vez em quando lhe emprestava o médico, seu vizinho e seu compadre, outras nenhumas possuía o bom vigário de Itabira do Matto Dentro.
Aos domingos, depois da missa, fazia uma pequena prédica aos seus fiéis. Comunicava com as suas ovelhas como se tivesse comunicando com as suas couves ou com as galinhas. E as suas prédicas eram simples e ingênuas, como o seu coração e o seu povo.
Uma ocasião leu na Gazeta que o Papa Leão XIII proibira o casamento de tio com sobrinha. Por isso, um domingo, depois da missa, assim falou ele aos seus fiéis:
– Meus irmãos, o Papa Leão XIII (dizia ele: xis, mais três um) na bula que mandou p’ras suas oveias diz que fica imprevisto o casamento de tio com sobrinha. Este casamento, meus irmãos, faiz a infelicidade de uma casa, traiz muita desgraça p’ras famias. Os tio que casa com as sobrinha, os fios nasce tudo analfabeto.
Finda a prédica, uma senhora, filha do lugar, mas que fora educada e casara aqui no Rio, foi ter com o cura e lhe disse:
– Seu padre o senhor falou hoje, que os filhos de tio com sobrinha nascem todos analfabetos. Pois olhe: eu não tenho parentesco nenhum com o meu marido; nossas famílias nem se conheciam, e, no entanto, todos os nossos filhos nasceram analfabetos.
O padre olhou-a de alto a baixo, considerou-a um momento, e, sinceramente condoído daquela irreparável desgraça, lhe disse:
– É. Isso às veis acontece.
[Dom Quixote, 1921. Hemeroteca BN-Rio]
Esperteza rara
Léo Sá
Joaquim Procópio, natural de Itabira do Matto Dentro, era bojudo mineiro apatacado, desses que o leitor sempre imagina ver quando lê as pilherias injustamente atribuídas a esses visitantes da “Corte”.
Nada o atrapalhava, nada o fazia estacar, nada o fazia desistir de uma ideia que lhe fervilhasse o cérebro.
Um dia, pode realizar o seu sonho, veio à “Corte”. Espantado, admirado, olhos desmesuradamente abertos eis o seu lastimável estado quando tomou lugar no elevador num dos muitos hotéis adjacentes à Central do Brasil.
O automóvel! Oh! O aeroplano! Ih! O elevador! Chi! O bonde! Eh! O telefone! Ah! O telefone, é verdade… quem diria…
Que enormidade de perguntas fez ao porteiro, como era que se falava naquela caixinha… pois seria possível?
Vencendo a custo certa incredulidade, na manhã seguinte à da sua chegada, acompanhado do porteiro e de um cartão de visita de um seu amigo que costumava ir veranear na sua vasta fazenda, cartão em que estava indicado o número do telefone, abalançou-se a pedir, em uma voz mista de curiosidade e desconfiança: Sul dois-dois-quatro.
Resposta impreterível da telefonista: a linha está ocupada; segunda tentativa, terceira, quarta, baldado o esforço.
Não, não era ele, Chico Procópio, que desistiria, custasse o que custasse. Eis senão quando uma ideia lhe atravessa a mente:
– Faz favor… Sul dois…dois…três.
– Pronto! Responderam dali a momento.
– Minha senhora, começou ele perante o olhar extasiado do porteiro, faz o favor de me chamar o vizinho…
– Que vizinho? Perguntaram.
– Ora, minha senhora, o vizinho do dois-dois-quatro Sul, aí ao lado.
[Revista Dom Quixote, 1921. Hemeroteca BN-Rio]
Ilha da Batataria
“Carregou o Faustino”
(Ditado)
Lá para a minha terra, zona de Itabira, Santa Anna dos Ferros até o Tijuco, quando um sujeito se hospeda por mais de 8 dias em casa de outro; quando um tipo integral e perobicamente cacete se apega a nós e nos segue todo dia; quando um miserável nos faz parar em plena rua (quando vamos tirar o pai da forca) e nos conta uma história infinita (onde o herói é pai da tia do avô do sogro do Manoel) e, por contrapeso, nos abotoa e desbotoa o casaco trinta vezes; quando um vizinho nos pede emprestada, duas vezes por semana, a nossa besta de estimação; quando enfim, o paciente sai furioso ou exausto de uma dessas, um amigo chega e lhe murmura ao ouvido:
– Carregou o Faustino, heim?
Aí, toda a gente sabe ainda de onde vem o ditado. Contou-me o vaqueiro dum amigo meu:
– Sô Fostino num era nada. Vai daí, tira uns cobres na lotiria da Corte. Só tinha muié. Nois viu:
– cumia mandioca cum melaço e fubá de munho. Nunca gastou dinheiro: – tava amuntuano. Condo morreu, iô chamei o Juca carrêro, o boliêro e o fiio e disse: – “Sô Fostino morreu. Bamo fazê quarto, q’a viúva tem cheta e a gente pode percisá dela”
– Fumo, passemo a noite intirinha oiando o home. Pois sô moço nem ao menos paraty! De menhã cidinho, carreguemo sô Fostino p’ru cimiterio da vila. Oie que é 4 légua isticada… Vortemo e fumo fala c’a viúva…
– Sô dotô, pur Nossa Sinhora, nem as vela que nós compremo p’ra iluminá o cadavel.”
E o ditado espalhou-se na zona.
[Dom Quixote, 1917. Hemeroteca BN-Rio]
Delicia de leitura! É no cotidiano das pessoas comuns que se encontra o que há de mais valioso por essas terras….
Um abraço, Cristina!
Boas festas e um 2022 com melhores notícias para todos nós!