Mínimo existencial ecológico

Por Flávia Alvim de Carvalho 1

“Por que todos os rios são sujos? A pergunta não saia da cabeça do menino. Deitado no quintal, debaixo da árvore, ele pensava: os dois rios da cidade eram imundos. (…) Até os rios da televisão eram sujos. No programa educativo, o Sujismundo pulava dentro do rio para nadar e já saia doente, todo cheio de perebas. No intervalo da propaganda aparecia um homem todo bonito da Companhia de Água e Esgotos explicando como eles usavam o dinheiro do povo para limpar a água dos rios e colocá-las nas torneiras dentro de casa. No final, o homem mandava todo mundo pagar a conta de água até o final do mês.” 2

Dicionário de Direitos Humanos* – O mínimo existencial ecológico simboliza um padrão mínimo de integridade ecológica para a garantia de uma vida saudável e digna, vez que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é essencial para o desenvolvimento da vida humana e, dessa forma, condição natural, fundamental, sem a qual não se pode exercer qualquer dever ou lutar pela efetivação e/ou reconhecimento de qualquer direito.

*O dicionário é fruto do Redes de Direitos Humanos do Programa de Pós graduação da PUC Minas, com o objetivo de produzir uma obra plural e acessível sobre Direitos Humanos, particularmente brasileira e latino-americana. Foi disponibilizado na sexta-feira (26) no formato digital e encontra-se no site da editora também no formato físico para aquisição. https://www.editorafi.org/323dicionario.

O mínimo existencial ecológico parte da compreensão da dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana, visando um patamar mínimo de qualidade ambiental ou existencial ecológico como garantia a uma equilibrada e sadia qualidade de vida, para que o desenvolvimento humano aconteça dentro de padrões sustentáveis3, em um contexto de integridade da Natureza, promovendo a concretização da vida em níveis seguros e dignos.

Nesse sentido, o constitucionalismo ecológico avança para enfrentar o quadro de desigualdades e degradação em busca de condições mínimas de bem-estar para além de sua vertente original de cunho social. (SARLET; FENSTERSEIFER, 2019).

Modos de vida que visavam a complementariedade e que não eram pautados pela acumulação de capital foram atropelados pela velocidade imposta pelo relógio da Modernidade, o que comprometeu, em alguns casos, ecossistemas inteiros colocando a humanidade frente aos riscos, por ela mesmo criados, advindos em sua maioria da obsessão pelo “desenvolvimento”4 a qualquer custo.

O aquecimento global, os desastres, a poluição, os impactos ambientais de forma geral que direta ou indiretamente afetam o meio ambiente e a qualidade de vida e recentemente a pandemia, nos alertam sobre os limites planetários e sobre nossa forma de intervir no mundo, o que aumenta a vulnerabilidade socioambiental, principalmente, dos povos mais pobres, das “periferias do mundo”, principais vítimas de um processo que “chamamos de ‘desregulamentação’, e que confere um sentido cada vez mais pejorativo à palavra ‘globalização’” (LATOUR, 2020, p.9), que ao contrário de multiplicar, simplifica, universaliza um tipo de visão único.

Diante do atual cenário de crise ambiental e do colapso climático, as desigualdades sociais e as injustiças aumentam, o que compromete, ainda mais, as condições necessárias, ou mínimas, para uma vida digna e segura, não só no presente como para o futuro. O comprometimento da qualidade ambiental gera insegurança e compromete toda a sociedade e cada indivíduo, pois, as leis da Natureza agem de forma sistêmica interligando todos os componentes presentes nesta “teia da vida”5 .

Sobre essa crise econômica, social e ambiental em que vivemos, podemos concluir que: possui suas bases no sistema colonial extrativista; foi ignorada pelos modernos e encoberta pelas elites obscurantistas do nosso tempo e nos colocam, hoje, diante da necessidade de exigir políticas ambientais efetivas que combatam a desinformação e a negação cotidiana e garantam condições ambientais mínimas à sadia qualidade de vida, tais como proteção contra as contaminações químicas, poluição atmosférica e hídrica.

“Vários direitos classificados como fundamentais requerem, como uma precondição necessária ao seu exercício, uma qualidade ambiental mínima e se veem afetados de forma profunda pela degradação dos recursos naturais.” (OC n. 23/2017 sobre “Meio Ambiente e Direitos Humanos” da Corte Interamericana de Direitos Humanos, tradução nossa).

Como podemos perceber, a segurança social não está separada da segurança ambiental, sendo necessária a harmonização da atuação humana no Planeta Terra com o modus operandi da Natureza, com os ritmos e a pluralidade da vida. “Em regra a miséria e a pobreza (…) caminham juntas com a degradação e poluição ambiental, expondo a vida das populações de baixa renda e violando, por vias distintas, a sua dignidade” (SARLET; FENSTERSEIFER, 2019, p. 206 -207).

O mínimo existencial ecológico é uma garantia fundamental que depende da consciência de interdependência e de políticas públicas comprometidas com as cotidianas lutas de combate à pobreza, assim como o direito a cidades sustentáveis, direito à água potável, saneamento básico, limpeza urbana e manejo adequado dos resíduos, ou seja, proteção ambiental que garanta o mínimo para uma vida saudável, segura e digna.

Para isso é preciso construir um novo Estado de Direito de matriz ecológica6 , que não se omita e esteja, portanto, compromissado com a preservação e restauração dos processos ecológicos essenciais à manutenção da vida para as gerações presentes e futuras (solidariedade intergeracional), assim como para as demais espécies (solidariedade interespécies) que compartilham conosco este planeta que representa a reunião das condições indispensáveis à proliferação da vida.

Separado da Natureza o ser humano deixa de existir, delira (não há essa alternativa). É preciso consciência, solidariedade planetária e promoção de políticas públicas que atendam a novos critérios de justiça amparados por novos paradigmas jurídicos e epistemológicos que considerem a complexidade social e ambiental, para que o Estado, de fato, passe não só a garantir, mas a promover o mínimo existencial ecológico, necessário à uma vida digna.

Notas

1 Advogada, mãe, especialista em Direito Público e Direito Internacional Aplicado, mestranda pelo PPGD PUC Minas – linha de pesquisa “Teoria do Direito e da Justiça”, secretária da Comissão de Direito Ambiental da OAB – ES, coordenadora do grupo de estudos sobre mudanças climáticas da mesma instituição, autora do livro “Educação Ambiental à Luz do Direito: uma introdução aos direitos difusos e coletivos de forma lúdica e acessível: um caminho à conscientização”.

2 Trecho retirado da obra “O Menino e o Rio”, de Ângelo Machado. Literatura infanto-juvenil brasileira que alia a ficção à verdade.

3 Importante perguntar quando se refere a “padrões sustentáveis”: sustentáveis para quem? Assim como, ressaltar que, em se tratando de poluição, padrão não é direito e sim limite “tolerável” (tolerado por quem e o que é preciso tolerar?) quando não existe no mercado melhor tecnologia disponível.

4 “Desde meados do século 20, um fantasma ronda o mundo. Esse fantasma é o desenvolvimento. Apesar de a maioria das pessoas seguramente não acreditar em fantasmas, ao menos em algum momento acreditou no ‘desenvolvimento’, deixou-se influenciar pelo ‘desenvolvimento’, perseguiu o ‘desenvolvimento’, viveu o ‘desenvolvimento’. E é muito provável que continue assim. (…) Agora, quando múltiplas e sincronizadas crises afogam o planeta, vemos que este fantasma trouxe e continua trazendo funestas consequências. O desenvolvimento pode inclusive não ter conteúdo, mas justifica seus próprios meios e até seus fracassos. (…) Tudo é tolerado na luta para deixar o subdesenvolvimento em busca do progresso. (…) Por isso, aceitamos a devastação ambiental e social em troca de alcançar o ‘desenvolvimento’. Pelo desenvolvimento, para citar um exemplo, aceita-se a grave destruição humana e ecológica provocada pela megamineração, mesmo sabendo que ela aprofunda a modalidade de acumulação extrativista herdada da colonização – que é uma das causas do subdesenvolvimento.” (ACOSTA, 2019, p.51, 59).

5 Referência a obra “A Teia da Vida” de Fritjof Capra, que busca uma compreensão maior e sistêmica da realidade em que vivemos, alertando-nos, contudo, à nossa crise de percepção diante de um mundo superpovoado e globalmente interligado.

6 Sarlet e Fensterseifer sobre “Estado (Democrático, Social e) Ecológico de Direito e Mínimo Existencial Ecológico, In: SARLET, Ingo Wolgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito Constitucional Ecológico: constituição, direitos fundamentais e proteção da natureza. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. Flávia Alvim de Carvalho | 317

Referências

ACOSTA, Alberto. O bem – viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Tradução de Tadeu Breda. São Paulo: Autonomia Literária, Elefante, 2016.

CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida: nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução de Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Editora Cultrix, 1996.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva n. 23/2017 sobre “Meio Ambiente e Direitos Humanos”. Disponível em: < https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_23_esp.pdf>. Acesso em: 16. 08. 2021.

LATOUR, Bruno. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Tradução de Marcela Vieira. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

MACHADO, Ângelo Barbosa Monteiro. O Menino e o Rio. Belo Horizonte: Editora LÊ, 1989. SARLET, Ingo Wolgang;

FENSTERSEIFER, Tiago. Direito Constitucional Ecológico: constituição, direitos fundamentais e proteção da natureza. São Paulo: Revista dos Tribunais, 201

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