“Adeus, composição que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade”

Ilustração sem título, colagem sobre madeira, de Manoel T. Bersan, 2018

 Os últimos dias é um poema forte demolidor de um homem se fortalecendo, expandindo a consciência e o poeta predisposto a ser um dos maiores poetas brasileiros. Viva Drummond! (MCS)

Os últimos dias

Carlos Drummond de Andrade

Que a terra há de comer.

Mas não coma já.

Ainda se mova,

Para o ofício e a posse,

e veja alguns sítios

antigos, outros inéditos.

 

Sinta frio, calor, cansaço;

pare um momento; continue.

Descubra em seu movimento

forças não sabidas, contatos.

O prazer de estender-se; o de

enrolar-se, ficar inerte.

 

Prazer de balanço, prazer de voo.

Prazer de ouvir música;

sobre papel deixar que a mão deslise.

Irredutível prazer dos olhos,

certas cores: como se desfazem, como aderem;

certos objetos, diferentes a uma luz nova.

 

Que ainda sinta cheiro de fruta,

de terra na chuva, que pegue,

que imagine, que grave, que lembre.

 

O tempo de conhecer mais algumas pessoas,

de aprender como vivem, de ajudá-las.

De ver passar este conto; o vento

balançando a folha; a sombra

da árvore, parada um instante,

alongando-se com o sol, e desfazendo-se numa sombra maior, de estrada sem trânsito.

 

E de olhar esta folha, se cai

na queda retê-la. Tão seca, tão morna.

Tem na certa um cheiro, particular entre mil.

Tem um desenho, que se produzirá ao infinito,

e cada folha é uma diferente.

 

E cada instante é diferente, e cada

homem é diferente, e somos todos iguais.

No mesmo ventre o escuro inicial, na mesma terra

o silêncio global, mas não seja logo.

 

Antes dele outros silêncios penetrem

outras solidões derrubem ou acalentem

meu peito; ficar parado em frente desta estátua, é um torso

de mil anos, recebe minha visita, prolonga

para trás meu sopro, igual a mim

na calma, não importa o mármore, completa-me.

 

O tempo de saber que alguns erros caíram, e a raiz

da vida ficou mais forte, e os naufrágios

não contaram essa ligação subterrânea entre homens e coisas,

que os objetos continuam, e a trepidação incessante

não desfigurou o rosto dos homens

que somos todos irmãos, insisto.

 

Em minha falta de recursos para dominar o fim,

entretanto me sinta grande, tamanho de criança, tamanho de torre,

tamanho da hora, que vai acumulando século após século e causa vertigens,

tamanho de qualquer João, pois somos todos irmãos.

 

E a tristeza de deixar os irmãos me faça desejar

partida menos imediata. Ah, podeis rir também,

não da dissolução, mas do fato de alguém resistir a ela,

de outros virem depois, de todos sermos irmãos,

no ódio, no amor, na incompreensão e no sublime quotidiano, tudo, mas tudo é nosso irmão.

 

O tempo de despedir-me e contar

que não espero outra luz além da que nos envolveu

dia após dia, noite em seguida à noite, fraco pavio,

pequena ampola fulgurante, fecho, lanterna, faísca,

estrelas reunidas, fogo na mata, sol no mar,

mas que essa luz basta, a vida é bastante, que o tempo

é uma boa medida irmãos vivamos o tempo.

 

A doença não me intimide, que ela não possa

chegar até aquele ponto do homem onde tudo se explica.

Uma parte de mim sofre, outra pede amor,

outra viaja, outra discute, uma última trabalha,

sou todas as comunicações, como posso ser triste?

 

A tristeza não me liquide, mas venha também

numa noite de chuva, numa estrada lamacenta, num bar fechando-se,

que lute lealmente com sua presa,

e reconheça o dia entrando em explosões de confiança esquecimento amor,

ao fim da batalha perdida.

 

Este tempo, e não outro sature a sala, banhe os livros,

nos bolsos, nos pratos se insinue; com sórdido ou potente clarão.

E todo o mel dos domingos se tire:

o diamante dos sábados, a rosa,

de terça, a luz de quinta, a mágica,

de horas matinais, que nós mesmos elevamos

para nossa pessoal despesa, essa parte secreta

de cada um de nós, no tempo.

 

E que a hora esperada não seja vil, manchada de medo,

submissão ou cálculo. Bem sei, um elemento de dor

rói sua base. Será rígida, sinistra, deserta,

mas não a quero negando as outras horas nem as palavras ditas antes com voz firme os pensamentos

maduramente pensados, os atos

que atrás de si deixaram situações.

 

Que o riso sem boca não a aterrorize

e a sombra da cama calcárea não encha de súplicas,

de dedos torcidos, lívido

suor de remorso.

 

E a matéria se veja acabar: adeus, composição

que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade,

adeus, minha presença, meu olhar e minhas veias grossas,

meu sulco no travesseiro, minha sombra no muro,

sinal meu no rosto, olhos míopes, objetos de uso pessoal,

ideia de justiça, revolta e sono, adeus,

adeus vida aos outros legada.

[Diário de Pernambuco, 6/6/1944. Hemeroteca da BN-Rio]

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1 Comentário

  1. 09 de outubro , 173 anos 2021… Itabira de muitas fontes de águas abundantes … A cada vertente uma nascente …. Itabira aniversariando é hoje vista , o nunca nela visto . Na cidade a água nas casas faltar … Nas ruas não chegar …
    Nas roças a luz acabar . Visto pelo povo , a união dos três poderes precisar . E que nenhum ao outro possa culpar , sim em decisões conjuntas tomar. Vistos que os poderes emanam se do povo , para o povo serem exercidos . Itabira somos todos vós e todos nós. Que Deus abençoem a todos numa só união.

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