Lembranças etílicas

Rafael Jasovich*

Na época que morei em Sampa tenho lembranças de muitos bares, freqüentava alguns dos quais gostava mais; deste que vou contar era perto de meu trabalho.

Ao sair da reunião de trabalho e pôr o pé na rua, sinto no rosto a brisa quente do inverno com jeito de verão. Um chope, quem sabe? Coisa rápida. Em poucos minutos, estou sentado a uma das mesas de um bar no centro de São Paulo, não lembro do nome.

Uma mesa era a única ocupada no fim de tarde daquela terça-feira. Ao me ver, o dono aciona a histórica chopeira torneada em bronze e já traz o schinit com dois dedos de colarinho – irrepreensíveis.

Peço uma salsicha branca para acompanhar. E, com o celular desligado, começo a passear os olhos pelo salão vazio.

Situado na esquina abaixo do monstruoso minhocão uma das jóias da cidade. Foi fundado em 1908, com o nome que mantém até hoje.

Ainda hoje tem o ancestral refrigerador de madeira, a estante com as bebidas “quentes” e garçons vestidos à moda clássica: calça preta e camisa branca.

No teto revestido em chapisco, três ou quatro ventiladores garantem um pouco de refresco contra o calor. Luta inglória.

Embora sirva aquele que é, de longe, o melhor chope da cidade, já há alguns anos vem perdendo clientes. A falta de ar-condicionado pesa na equação.

Além disso, muitos preferem os bares da moda, com música alta e drinks descolados, ou as anódinas franquias que se espalham pela cidade, corroendo peculiaridades, histórias, minúcias.

Novos rostos atrás do mesmo véu, como cantava o Cazuza.

O garçom tem 33 anos e trabalha há dez no bar.

Nossa conversa é interrompida por três homens engravatados que o abordam pedindo o cardápio. Após a rápida conferida, um deles questiona se a cozinha pode preparar algo ligeiro. Uma fritada sugere.

Os homens se vão, o garçom retorna.

— Queriam um ovo — comenta, com uma expressão gaiata no rostro. — Lembra daquele lugar ali? — ele aponta para a mesa redonda, maior que as demais, que fica ao centro do salão.

— Sim, vinham sempre uns senhores de cabelo branco — respondo.

— Isso. Eram cinco depois eram dois agora está vazia…

Talvez as horas tenham mesmo parado desde que entrei ali em busca de um chope. Observo as arandelas, o cartaz com a promoção do bolinho de carne, os lustres redondos em cor gelo, o biombo que fica à entrada, a fim de proteger a intimidade de quem está dentro do bar.

Regresso, então, dessa espécie de reticência no tempo. Escrever a crônica da semana, revisar dois artigos do trabalho.

Peço a saideira e a conta.

Já na rua, antes de chamar o táxi, me volto mais uma vez para o bar. E, por alguns segundos, contemplo o salão esvaziado só para ter a certeza de que ainda está ali.

*Rafael Jasovich é jornalista e advogado, membro da Anistia Internacional.

 

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