Covid-19, uma tragédia anunciada
Por Nelson Rodrigues dos Santos*
[EcoDebate] Passamos o 2020 com a sociedade amargando essa grave pandemia: medo do contágio, adoecendo, morrendo e defendendo-se somente com o distanciamento entre as pessoas e objetos suspeitos, uso de máscaras, higiene de mãos, etc. As mortes podendo ser diminuídas ou evitadas com tratamento oportuno: domiciliar ou hospitalar.
Todos os países no mundo foram pegos de surpresa, e na falta de vacina, as sociedades e seus governos, com base nos conhecimentos das ciências biológicas e humanas, criaram entendimentos e adotaram formas de distanciamentos entre pessoas em locais de trabalho, comércio, transportes coletivos e outras aglomerações: familiares, artísticas, esportivas, festejos, rituais etc.
Mudanças essas, quase sempre incômodas ou sofridas: de hábitos, confortos e ganhos, contendo os contágios até a chegada dos efeitos da vacinação massiva e controle da pandemia.
As duas grandes tendências mundiais
Esses entendimentos de prioridades dos governos e sociedades estenderam-se à clareza e segurança de que entre os efeitos do distanciamento social também constava a retração das atividades econômicas, principalmente as de prestação de serviços com inevitável aproximação interpessoal com autônomos, micro, mini e médios empresários, perdas essas parcialmente compensáveis pelos governos como abatimento de impostos, auxílio emergencial e outras.
Na prática ficou demonstrado que a prioridade à saúde e à vida da população comprovou-se como a maior garantia de retorno mais rápido às atividades econômicas, de modo escalonado, controlado e aguardando a vacinação com o menor número possível de doentes e mortos.
Assim vem ocorrendo em Nova Zelândia, Singapura, Coréia do Sul, Vietnã, Canadá, Israel, Japão, China, maioria dos países da Comunidade Europeia e outros. Esses países programaram sua vacinação com vários meses de antecedência, mesmo antes da sua descoberta: com alternativas de grupos populacionais prioritários, acesso à vacinação, estocagem e conservação das vacinas e seus insumos, tudo com mais eficácia e resultados.
Em outro extremo pouquíssimos países, com destaque para os EUA no seu governo anterior e o Brasil, com o governo federal, contra os alertas científicos, dos Estados e Municípios e com ansiedade na sociedade.
Esses dois governos apegaram-se desde o início, de forma irrealista e estreita, à intransigência de que o desempenho da Economia é a “mola propulsora”, por isso, a prioridade imperiosa acima de tudo, inclusive da saúde e do controle da pandemia.
Por isso, passaram a ridicularizar os distanciamentos sociais perante a população durante todo o 2020, até o uso de máscaras. Nem o teste PCR, indicador de grupos populacionais potencialmente mais transmissores do vírus, foi devidamente adquirido e aplicado para orientar os afastamentos sociais.
Esses dois países passaram para 2021 com os maiores volumes de doentes e mortos por Covid-19 no mundo. Em nossa sociedade, com mais de 10 milhões de doentes e 250 mil mortos. A cada dia vem morrendo mais de mil brasileiros por Covid-19: três vezes mais que por assassinatos e quatro vezes mais que por acidentes de trânsito.
O novo governo dos EUA desde sua posse resgata a responsabilidade federal de uma parceria com os Estados, Municípios, instituições científicas e entidades da sociedade, para a recuperação da Economia no bojo da recuperação da Saúde.
Particularidades do caso brasileiro
1.- Diagnóstico de situação, formulação de estratégias e ações frente à pandemia:
O governo federal desconsiderou a rica e produtiva experiência de mais de três décadas da intergestão federal/estadual/municipal na aplicação das diretrizes constitucionais do SUS, consubstanciada nas comissões permanentes Tripartite nacional e Bipartites estaduais, assim como nos respectivos Conselhos de Saúde.
Após a brevíssima gestão do primeiro Ministro da Saúde, demitido, os Estados e Municípios viram-se na contingência de adotar e muitas vezes improvisar com recursos próprios, estratégias e ações inadiáveis de contenção dos contágios e de assistência hospitalar, incluindo aquisições de equipamentos e medicamentos.
A esfera federal deixou de: a) em parceria com os Estados e Municípios, operar aquisição precoce e tecnicamente adequada de equipamentos e medicamentos com preço unitário bem menor, o mesmo em relação ao teste PCR,
b) liberar integralmente e em tempo hábil aos Estados e Municípios, os recursos adicionais aprovados pelo Legislativo,
c) rever sua proposta de auxílio emergencial em R$ 200 mensais sob alegação de que “acabou o dinheiro” e que “com a renda mínima ninguém vai trabalhar”, o que levou o Legislativo à aprovação de R$ 600, e
d) agora, em fevereiro/2001, manter sua participação no financiamento dos leitos de UTI para a Covid-19, cortando 50%, ainda na vigência das ondas da pandemia e variantes do vírus e alta ocupação das UTIs em metade dos Estados.
- – A “ocupação” do Ministério da Saúde – MS
A partir de 22/Abril na Secretaria Executiva/MS e de 15/Maio no gabinete ministerial, o Ministério foi “ocupado” por dezenas de militares nos principais escalões técnicos e administrativos, desconsiderando toda a experiência técnico-administrativa acumulada nos 32 anos pós-constitucionais, desmontando, distorcendo ou paralisando os avanços arduamente construídos em cumprimento das diretrizes constitucionais.
Nem na ditadura 1964-84 houve essa “intervenção”, como se o MS fosse um “bunker” anti-nacional, anti-social e anti-constitucional. A justificativa à sociedade foi a grande experiência em logística do titular e sua equipe. Logística para que?
Exemplificando: a) preparar os serviços básicos e especializados para conter a expansão da pandemia em função das realidades regionais e locais para o cumprimento dos afastamentos sociais, uso de máscaras, higiene pessoal, etc., em articulação com os governos estaduais e municipais, as comissões intergestores nacional, estaduais e regionais e os conselhos de saúde,
b) com as Secretarias de Saúde estaduais e municipais (CONASS e CONASEMS), mapear nos Estados e Regiões, com antecedência estratégica, a capacidade instalada real e potencial na rede básica, ambulatorial, laboratorial e hospitalar, incluindo estoque de medicamentos básicos, de oxigênio e outros, visando aquisições e estocagens prévias,
c) prever e prevenir em tempo hábil, tendências de desatendimento de outras doenças de maior morbi-mortalidade, e
d) com base na complexa experiência das “ondas” e picos da pandemia, formular junto aos Estados e Municípios, alternativas com base na relação custo-efetividade, para fortalecimento de equipes assistenciais, e/ou equipamentos adicionais, e/ou hospitais de campanha, e/ou remoção de doentes graves para outras cidades e Estados menos congestionados, etc.
- – Ano de 2020: a prioridade aos distanciamentos sociais, máscaras etc
Dirigentes do governo federal, de alta influência e comunicação, seguidamente desqualificaram e até ridicularizaram os afastamentos sociais e mesmo o uso de máscaras que “além de serem ineficazes” na prevenção dos contágios, prejudicariam a economia e a produção.
Abusaram da credulidade e até do respeito de boa parte da população aos seus governantes, desarmando-a da sua própria autodefesa da saúde e da vida. No grande recrudescimento de Janeiro/2021 acrescentou-se o relaxamento nas festas natalinas.
- – Anos 2020/21: a prioridade à produção nacional anti-coronavírus:
O governo federal piorou o já perverso desinvestimento na pesquisa científica e aplicada no campo da criação e produção de vacinas e seus insumos, mesmo no contexto muito positivo da excelência em nível internacional dos nossos institutos como o Butantan, a Bio-Manguinhos/FIOCruz e outros, e do nosso Programa Nacional de Imunização-PNI.
Em 2020 o governo federal liberou menos de 10% do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Ciência e Tecnologia. De 2020 para 2021, houve corte de 69% na importação de insumos para pesquisa científica em nossas instituições de pesquisa.
Vale lembrar que essa investida contra nossa ciência e tecnologia, vem dos anos 90, com projeto de Lei do Executivo federal privilegiando propriedade intelectual a países centrais.
Com isso, quebrou o desenvolvimento do nosso parque de química fina que contava com 300 projetos e 1.050 estações de produção (só na produção de ingredientes farmacêuticos ativos detínhamos 55% até o final dos anos 80, estamos hoje com 5%).
Butantan e Bio-Manguinhos por sua excelência duramente mantida, conseguem manter acordos internacionais isolados. Estaríamos hoje pelo menos emparelhados na criação e produção de vacinas e seus insumos, à Índia, China e Rússia nessa área, caso nosso potencial fosse reconhecido por um projeto de nação minimamente desenvolvimentista.
- – Ano 2020: a corrida à encomenda precoce aos produtos de vacina anti-coronavírus
O governo federal desdenhou essa encomenda o ano todo. Quando em 20/09/2020 assinou o projeto de fornecimento de vacinas “COVAX Facility” apoiado pela OMS, mais de 170 países já tinham aderido desde o primeiro semestre, antes de criada qualquer vacina.
Somente nos últimos dias de 2020 e em janeiro/2021, perante dramática comoção social e política com o avanço da pandemia, e iniciativas de alguns Estados na compra de vacinas, o governo federal relaxou sua resistência contra a prioridade à vacinação.
Por coincidência ou não a diretoria da Anvisa, em reunião memorável no início de Janeiro/2021, aprovou por unanimidade a importação e utilização das primeiras partidas de vacinas, e o governo federal somou-se às iniciativas estaduais para a ampliação das importações e distribuição equitativa no território nacional.
Prevemos para 2021 certa lentidão devido a: a) o desdém nacional federal e o grande desgaste nacional com a aberta antipatia e inépcia das nossas relações internacionais durante 2020, com países produtores da vacina como a China, Índia, Rússia e outros,
b) a concordância federal oficiosa com iniciativa de parte do grande empresariado para importação privada de vacinas destinadas às suas empresas com seus empregados, e
c) a insistência do governo federal durante 2020 em ridicularizar e denegrir as vacinas perante a população, incluindo alertas contra enganosos “efeitos nocivos” da vacina à saúde das pessoas, como alteração do DNA e outros.
Felizmente essa “pregação” vem sendo superada pela larga e acessível informação nacional e internacional, pela nossa imprensa, pelo próprio instinto de sobrevivência da população e pela boa lembrança popular do PNI.
- – Ano 2020: a farsa do “tratamento precoce”
Altas autoridades do governo federal recomendaram e orientaram insistentemente durante 2020 até Janeiro/2021, em todo o país, mais no Norte e Nordeste, o “tratamento precoce” com cloroquina, hidrocloroquina, invermectina e outros.
Medicamentos reconhecidos nos meios científicos e institucionais, nacionais e internacionais para outras doenças como a Malária, mas não para o coronavirus, neste caso é simples placebo.
Em nosso país, além de 2 milhões de comprimidos de cloroquina doados inicialmente pelo presidente dos EUA, foram comprados mais 7 a 9 milhões pelo governo federal no Laboratório Químico do Exército e no Farmanguinhos/FIOCruz (que reafirma sua produção histórica de cloroquina para a Malária) e a invermectina em laboratório multinacional (que declarou não reconhecer ação da invermectina contra o coronavírus).
O “tratamento precoce” da Covid-19 vem sendo estratégia exclusiva do governo federal, com o MInistério da Saúde-MS difundindo diretamente na gestão local do SUS, Prefeituras Municipais e em entidades locais, inclusive em aplicativo ministerial, priorizando o Norte e Nordeste.
Além de não prevenir nem curar, essa ação muito confundiu a população e contribuiu para fragilizar em grande parte, a consciência das reais ameaças à sua saúde e vida. Sob a grande comoção da tragédia de Manaus e denúncias públicas, o aplicativo foi desativado.
- – Janeiro/2021: a tragédia de Manaus e a decisão federal pela vacinação
A avaliação dos limites da estrutura da assistência hospitalar no Amazonas perante a evolução da pandemia, assim como em outros Estados, não foi priorizada estrategicamente pelo MS, com vistas a uma logística capaz de mapear e antecipar medidas preventivas ou atenuantes, como reservas de contingência regionais e inter-estaduais de equipamentos, materiais de consumo, profissionais especializados, e outros.
A inexplicável imprevisibilidade do desabastecimento de oxigênio nas UTIs no Amazonas, assim como o inexplicável retardo no reabastecimento e a remoção aérea de doentes graves, inclusive com variante do coronavírus para outros Estados, com vários óbitos, revela, em circunstância mais pungente e divulgada, a ausência da competência logística para circunstâncias similares no território nacional.
Sequer foram consideradas em tempo hábil as ricas práticas de menor custo e dependência em reconhecidos hospitais públicos de Goiania e Iguaçú,Pr, da produção local autônoma de oxigênio hospitalar de ótima qualidade.
Por final, a gritante falência logística federal em nível nacional, ao aceitar discutir a encomenda e aquisição de vacinas somente em Janeiro/2021, com a grande comoção da tragédia em Manaus, após alguns Estados terem iniciado em 2020 encomendas e contatos, e as pesquisas de opinião pública apontarem adesão às vacinas, acima de 70%.
Nessa grande falha logística inscreve-se a desconsideração da experiência do nosso PNI (interação nacional-estadual-municipal) quanto a: a) pré-cadastro pelo MS identificando grupos sociais prioritários por regiões na diminuição da mortalidade e transmissibilidade,
b) intensificação em regiões com maior carga de transmissão, variantes do vírus e segmentos populacionais mais vulneráveis, e c) diminuir a atual lentidão consequente à insuficiência da vacina e à pulverização no território nacional.
Uma oportuna referência internacional
Recente estudo de comissão especial da revista The Lancet (33 reconhecidos especialistas americanos, ingleses e canadenses) concluiu que: a) por volta de 40% das mais de 460 mil mortes americanas pelo coronavírus poderiam ter sido evitadas, isto é, estaria na média da mortalidade do Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão e Inglaterra, e
b) para tanto o governo federal americano deveria reconhecer as informações científicas baseadas em evidências sobre a Covid-19, sua ameaça e as medidas técnicas recomendadas pelos órgãos internacionais e nacionais de saúde, e por outro lado, abandonar postura e ações estreitas e compulsivas como cortes orçamentários na saúde pública, negação da ciência, prescrição de terapias ineficazes como a cloroquina, vinculação do acesso à saúde somente aos níveis de renda, retirada dos EUA no financiamento da OMS, etc.
Finalizando
Na conjuntura de 2021 emerge em nosso país agravamento de sofrimentos e tensões para dezenas de milhões de famílias com a extinção do auxílio emergencial: entre metade à totalidade da renda familiar, cuja queda de consumo leva à queda desastrosa nos comércios e economias locais. Como se dará um novo auxílio emergencial pelo Ministério da Economia, o controle efetivo da pandemia e o desenvolvimento socioeconômico?
Esse desemprego, pobreza, desamparo e os atuais 10 milhões de doentes e 235 mil mortos, contrastam chocantemente com 50% da riqueza nacional concentrados nos 1% mais ricos, com 230 mil brasileiros aplicando cada um no mercado financeiro global em 2015, o mínimo de US$ 1 milhão, mais de R$1,7 trilhões de depósitos brasileiros em paraísos fiscais, e incidência do nosso Imposto de Renda em 32% na renda dos 10% mais pobres, mas em 21% na renda dos 10% mais ricos.
Ampliando e multiplicando a histórica e imbatível contra correnteza civilizatória, constata-se mais uma vez a emergência e multiplicação de milhares de cidadãos, profissionais e cientistas nos diversos ângulos iluministas; simbolizam e nos ajudam no engajamento e caminhada.
Neste momento crítico da pandemia homenageio todas as lideranças libertárias comunitárias urbanas e rurais e, na saúde, Drauzio Varella, Gonzalo Vecina, Margareth Dalcomo e Raquel Stucchi em nome dos tantos milhares de profissionais sensíveis aos direitos humanos.
*Nelson Rodrigues dos Santos é membro do Conselho Superior do Instituto de Direito Sanitário Aplicado – IDISA, professor Apos.Unicamp, Ex-Secretário Executivo do Conselho Nacional de Saúde e Diretor de Programa no Ministério da Saúde.
Enquanto isso em Itabira, o Dr Roberto Barros defende que o médico tem autonomia para receitar o coquetel bomba.