Baptista Bastos ou o senhor 100%

Veladimir Romano*

Como diz o povo das ilhas crioulas: “alguém partiu para terra longe”. Certo que sim, partiu sem regresso na longa viagem um dos maiores personagens escribas da Língua portuguesa. Armando Baptista Bastos, ou o senhor 100% do jornalismo que durante uma vida [faleceu aos 83 anos] dedicou tempo, saber, alta qualidade, frontalidade, grande camaradagem e causa.

Armando Baptista Bastos, jornalista e escritor português, falecido recentemente (Foto: Pedro Simões)

Baptista Bastos ou BB, como todos aqueles que com ele tiveram o privilégio de conviver, logo pela manhã na redação, já o apanhava a matracar com toda aquela vitalidade inconfundível na pobre da máquina. Da sua escrita límpida, esclarecida e quase sempre corrosiva, brotavam peças de extraordinário valor literário e, com essa energia, muito rapidamente compreendeu que podia ser escritor.

Tanto assim que nos deixa uma obra ímpar, de enorme valor que só enobrece esta riqueza linguística do nosso entendimento. Amante da CPLP e admirador dos escritores brasileiros, muito cedo olhou ao Brasil criando uma agenda invejável de nomes e contatos onde se destacam Jorge Amado, Carlos Drummond, Murilo Mendes, José de Alencar.

E foi com ele que aprendi a conhecer a poesia de Álvares de Azevedo à escrita de Machado de Assis, João Ribeiro, Bernardo Guimarães, Junqueira Freire; entre outros mais; a lista é verdadeiramente longa e longas foram as horas batendo papo depois dos jogos do Belenenses, em plena tasca do tio Julião no alto da Ajuda, curtindo resto de tarde em absoluta mistura triangular temática que sempre passava pela política, literatura e poetas descobertos entre curiosidades e da boa comidinha saindo das mãos da senhora Beatriz que BB não dispensava depois da jornada quer o clube perdesse ou ganhasse, nunca faltava apetite.

Muito jovem iniciado como tipógrafo trabalhando junto do pai no velho, histórico e revolucionário jornal “O Século”, uma enciclopédia em conhecimentos gerais, homem que também muito novo começou trabalhando entre máquinas das tipografias lisboetas. Baptista Bastos assim se foi fazendo homem e jornalista, pois o bichinho da escrita nem precisou de pegar, pois já havia nascido com ele… um predestinado natural.

Juntos na velha escola do vespertino Diário de Lisboa onde conheci BB, depressa se criou cimentada amizade no ninho de camaradas que durante largos anos foi séria ameaça ao regime; alguns, incluindo ele, não mandavam suas peças ao cuidado abusivo mais garantido da Censura. O regime fascista, numa vez trabalhando no canal público da televisão nacional [RTP], mandou retirá-lo do programa, voltando somente depois do 25 de Abril.

Tantas são as histórias que cada uma pessoa que privou, trabalhou e conviveu com tamanha personagem, ficaria enchendo linhas descrevendo uma longa vida ativa. BB, era homem de trabalho pelo gosto, prazer, dedicação genuína, sempre devotado pela inspiração divina no homem agnóstico, sofria em ver tanta corrupção minando a vida da humanidade, como vivia em permanente revolta ao verificar a impunidade e a incompetência injustificada da prática judicial sobre tamanho assunto.

Escreveu a maior e mais completa reportagem feita por qualquer jornalista sobre um dos países dos PALOP [Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa], quando pegou na mala e foi viver Cabo Verde na onda da independência. Membro do Partido Comunista, BB, nunca deixou de criticar severamente certas estratégias partidárias e teimosias que fizeram o PCP [Partido Comunista Português], baixar percentagens importantes, eleição após eleição. Ele tinha razões mas nunca ninguém pediu para escutar observação acutilante e frontal saindo da sua sinceridade como homem idealista, pessoa do povo e para o povo.

Do seu lado castiço, alfacinha de gema, menino amante de Lisboa; certa vez foi convidado pela Universidade de Boston, para ali lecionar Literatura Portuguesa. Logo a sua preocupação na hora de assinar contrato, foi perguntando se naquela cidade norte-americana existia pelo menos bondi amarelo… como foi avisado que não ia ver cruzamento desses carrinhos elétricos pelas ruas e praças de Boston, não foi.

Pelo valor cultural, humano, profissional; podia BB ter ido para qualquer lugar deste planeta, mas o seu amor incondicional pela cidade de Lisboa, nunca deixou que o coração e a cabeça se dividissem. Viveu sempre do seu trabalho sem ambições materialistas dando grandes lições até nos inimigos que ele sabia quem eram.

O seu talento passava igualmente pela observação minuciosa em silêncio estudado que fazia ao pormenor das pessoas, fosse intelectual, rei, ministro, cozinheiro, jornaleiro vendendo na rua ou até sem-abrigo, pedinte; nada escapava na sua agenda solidária de homem simples, ficando sempre pronto para conversas em plena via urbana na sua aparente calmaria. Ele não conseguia ficar indiferente perante o ser humano.

Da saudade fica no meu privilégio ter sido também um dos editores do seu trabalho literário: “Elegia Para Um Caixão Vazio”: quando ainda escuto BB descendo escadas e já a meio caminho puxando pelos pulmões… «Veladimir, então, essa merda já tá pronta?», «Não! Então, vamos tomar um café…».

Hoje, as lágrimas já não têm tanto efeito,

de tanta tortura e combate acumulado

quando um corpo de homem com defeito

ainda assim consegue ser imaculado…

Com amizade para o BB [1934-2017]. Lisboa

 

* Veladimir Romano é jornalista e escritor luso-caboverdiano

 

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