Com as escolas de samba, plumas, miçangas e paetês migram para as avenidas de Itabira na década de 1970
Carlos Cruz*
Assim como acontece na vida das pessoas, o carnaval de Itabira também segue tendências, vive de ciclos – e sofre influências de outros carnavais. É o antropofagismo cultural, é o “caetanear o que há de bom.”
E não se observava também um ciclo sem a coexistência de outros – muitos existiram simultaneamente. E assim que terminava o desfile das escolas de samba – e o termo é bem este, as escolas desfilavam e o povo nas arquibancadas assistia e aplaudia, ou não – boa parte do público seguia para casa e os foliões mais animados terminavam a brincadeira de carnaval nos clubes. Leia também aqui.
É fato que as escolas de samba seguiam o modelo ditado pelo Rio, claro que guardadas todas as proporções cabíveis na comparação.
A vinda a Itabira da escola de samba Portela, do Rio, trazida pelo carnavalesco ex-prefeito Daniel Grisolia, no fim da década de 1960, por certo inspirou a formação de escolas de samba nas décadas seguintes na cidade do minério de ferro.
A primeira escola
Mas a fanfarra do Tobias, depois a Escola de Samba Gente Humilde de Itabira, foram pioneiras. Surgiram muito antes, na década de 1950 a primeira, e a segunda em meados dos anos 60. Leia aqui e aqui.
Já na década de 1970, um grupo de jovens do bairro Bela Vista fundou o bloco carnavalesco Apaches da Belinha, embrião de outra escola de samba que surgiu com força na avenida, vinda da parte da alta da cidade.
“Cinquenta rapazes, não havia moças, fantasiados de índios desfilaram na avenida Daniel Jardim de Grisolia, ao som da bateria emprestada pelo grupo de escoteiros. Foi quando compus o meu primeiro samba-enredo (Descobrimento de Itabira) ”, recorda Marconi Ferreira, carnavalesco, poeta e memorialista itabirano, que foi um dos caciques do bloco.
Descoberta
“No século passado, homens valentes e ousados/avistaram uma pedra azul/vinham de terras distantes/em busca de riquezas nas Minas Gerais/viajaram muitos dias sem parar/entre vales e colinas/até perto da pedra chegar/Formaram um pequeno povoado/fizeram uma igrejinha para à noite rezar/Ôô Do tupi guarani, esta pedra se transformou em Itabira”, foi a letra do primeiro samba-enredo de sua autoria do carnavalesco memorialista.
Em 1975 o bloco virou a Escola de Samba Mocidade Independente da Belinha. Marconi, autor dos sambas-enredos, sempre faturava o primeiro lugar no quesito, embora a sua agremiação carnavalesca invariavelmente amargava a terceira colocação. “Nossos destaques eram a bateria e o samba-enredo”, relembra o carnavalesco.
A mais liberal
Um ano depois surgiu o Grêmio Recreativo Unidos de Itabira, na Vila Amélia. Foi fundada pela incansável Durcelina Camila Gomes (1931/2013), a Dona Durce, a Dama da Alegria, como era carinhosamente chamada, a maior carnavalesca itabirana de todos os tempos, nascida em Santo Antônio do Rio Abaixo. A escola sagrou-se várias vezes campeã do carnaval de Itabira.
Conservadorismo e modernidade
Diferentemente da conservadora escola de samba Mocidade da Belinha, que por força de seu estatuto proibia a participação de quem fugia do padrão bem comportado, a Unidos de Itabira sempre foi transgressora, mais leve e solta, nela não havia preconceitos.
“A 9 de Outubro e a Unidos de Itabira eram liberais. Por isso brilhavam mais na avenida”, reconhece Marconi Ferreira.
“A Unidos de Itabira foi a única escola que nos deixou desfilar na avenida. Dona Durce nos dava a maior força, inclusive na criação dos figurinos”, contou João Leandro Couto, a travesti Michele, em entrevista ao jornal O Cometa. “No carnaval de 83 até mordida na ‘poupança’ eu levei”, regozijou-se a Michele ao contar a proeza ao jornal itabirano.
As escolas só exaltavam as “belezas e riquezas” da cidade mais gentil. Não havia críticas políticas e nem era mostrado o que era considerado feio ou triste, como a pobreza nos bairros, a maioria ainda nem sequer contava com saneamento básico na época.
Afinal, era tempo de ditadura. Seria temeridade tratar temas tão controversos, como a falta de democracia.
O garimpo do ouro, que trouxe mais de 5 mil garimpeiros para a grota do Minervino, entre os bairros Campestre e Bela Vista, não foi tema das escolas de samba. Todas “desconheceram” esse fenômeno socioeconômico que impactou Itabira. Se houve foi uma bateia ou outra nas mãos de algum folião, mais que isso não se tem registro.
Repressão
O que incomodava os conservadores de plantão naquela época, que são os mesmos de sempre, era a presença dos travestis e gays nas escolas de samba, principalmente na Unidos de Itabira e também na 9 de Outubro.
Foi assim que na terça-feira gorda do carnaval de 1980, depois de desfilar na avenida Carlos Drummond de Andrade, Michele e todos os trasvestis e gays da Unidos de Itabira (só os pobres!) foram perseguidos e detidos na cadeia pelo tristemente célebre major Brito, delegado de polícia, que se incumbiu pessoalmente da ignomínia tarefa.
Se sentindo o guardião da moral e dos bons costumes, o delegado considerou imoral as fantasias – “um atentado à sociedade itabirana”, segundo suas palavras no jornal O Cometa.
Os alegres e divertidos foliões só foram soltos de madrugada, após as intervenções indignadas e firmes de dona Durce, da escola de samba Unidos de Itabira, e de Myriam Souza Brandão, gestora da cultura itabirana e do carnaval oficial nas décadas de 1970/80.
E saíram leves e soltas cantarolando: “O delegado é bamba na delegacia, mas nunca fez samba, nunca virou Maria.” O delegado quis prender todo mundo novamente, mas desistiu. Afinal, era carnaval, resignou-se.
Elite na avenida
Na sequência, em 1976 nasceu com toda a pompa e circunstância o Grêmio Recreativo Escola de Samba 9 de Outubro, fundada pelo histórico carnavalesco TiMurilo e pelo pernambucano de Caruaru, José Cavalcanti Costa, o Zeca, ex-goleiro do Valério, entre outros neo-carnavalescos do bairro Pará. Foi outra grande campeã do carnaval itabirano.
“A escola trouxe a elite de Itabira para a avenida, com participação sempre criativa do estilista Zefferino. Ele desenhava os figurinos para 9 de outubro e a gente copiava muitas coisas depois”, revela Marconi Ferreira, que recorda cantarolando o primeiro samba-enredo da 9 de Outubro, música e letra do carnavalesco Zeca:
“Alô meu povo itabirano, a 9 de outubro te saúda/pela vez primeira que desfila, vinda do Pará/Pede passagem alegremente, para alegria dessa gente/ vamos festejar/Que a nossa escola acaba de passar. Ela saúda Itabira/Terra de um passado sem igual/Vamos minha gente/Para alegria do nosso carnaval”
A mais exuberante
A hegemonia da 9 de Outubro em pompa e circunstância só foi ameaçada com o surgimento da Escola de Samba da Sociedade Recreativa Canto da Juriti, fundada pelos moradores do bairro Campestre, tendo à frente o carnavalesco Luiz Carlos de Almeida, o Lulu. “A Juriti chegou linda, maravilhosa”, recorda Marconi Ferreira.
Fundada em 1985, em seu primeiro samba-enredo homenageou o cometa Halley, com o samba-enredo E os astros contam a estória, letra e música de José Antônio Cravo.
“Parecia até que Joãosinho Trinta tinha baixado no terreiro da Juriti, tamanha era a beleza da escola desfilando na avenida, inspirada na Beija-Flor, com o verde e branco.”
Já no fim do ciclo das escolas de samba, em 1988 surge o Recreativo Esportivo e Cultura Escola de Samba Flor de Lis, dos moradores do bairro Juca Batista.
Foi campeã naquele ano no quesito samba-enredo (Para não dizer que não falei das flores), de autoria de seu fundador Raimundo João de Souza.
Fim de um ciclo carnavalesco
O carnaval das escolas de samba na avenida teve o seu ciclo encerrado em 1993. Por incrível que pareça, e por justiça histórica, a última escola campeã na avenida foi a primeira a surgir em Itabira – e a mais pobre, a Gente Humilde, do Tobias. “Desbancou todas as outras escolas”, conta Marconi Ferreira, salientando que as tradicionais agremiações carnavalescas já não viviam o seu esplendor.
Após o último desfile com todas escolas de samba, por uns três anos seguintes a Unidos de Itabira continuou desfilando solitária, como uma heroína da resistência. “Dona Durce ainda persistiu, mas não teve como continuar sem o apoio oficial”, recorda Marconi Ferreira.
Já sem as escolas de samba, veio a invasão do “carnaval baiano” e tudo se transformou para pior. É que não veio o afoxé e muito menos os blocos afro, o Ilê Aiyê, muito menos o trio Elétrico de Dodô e Osmar.
Vieram os axés-musics mal copiados de Ivete Sangalo e Claudia Leite, massificando um carnaval na então recém-inaugurada avenida Mauro Ribeiro. Pelo seu desgaste natural, chegou ao fim sem deixar saudade.
Renascendo com os blocos
Por muito tempo Itabira ficou sem nada ter para festejar durante o tríduo momesco. Mas o incansável carnavalesco Marconi Ferreira promoveu um concurso de marchinhas (prêmio Abre Alas) em 2015 e 2016.
Tentou reeditar o concurso recentemente. Sem apoio, desistiu.
Agora, ele vê com alegria o retorno dos blocos como fórmula mais adequada e participativa de revitalizar o carnaval para o povo itabirano, principalmente para a maioria que não tem como carnavalizar e deixar se levar para curtir a festa momesca em outras cidades.
Assim como tem ocorrido em outras cidades, inclusive em BH, que por muitos anos ficou praticamente sem o culto ao Rei Momo, Itabira pode ter o seu carnaval de volta, se houver o apoio necessário e a Prefeitura não atrapalhar se não puder ajudar. “Acredito nos carnavais que podem ser organizados nos bairros e em pequenas comunidades. É um carnaval mais autêntico e popular”, defende Marconi Ferreira.
Que assim seja. Vida longa para os blocos Madalena e Altamente. E também para os carnavais do bairro Campestre e da pracinha do Pará, que infelizmente não teve neste ano. E outro viva para o carnaval de Ipoema também. Evoé Baco, evoé Momo. E em nome de todos os santos, que assim seja. Amém
*Carlos Cruz é jornalista, repórter e editor deste site Vila de Utopia
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