Drummond e a massa
Dinah Silveira de Queiroz*
… Ouviu-se uma espécie de urra, qualquer coisa de animalizado, a sair do bojo daquele todo com mil faces. E a massa caiu sobre Drummond, e por ele passou espumando como onda resvalando, raivosa…
Esta história nos foi contada pelo senhor Monteiro de Castro, no almoço que o presidente Café Filho ofereceu aos escritores. É um episódio da vida de Carlos Drummond – esse homem extraordinário, formado em Prosa e Poesia, advogando na crônica, fazendo, enfim isto que ninguém consegue fazer: tocar os sete instrumentos, com toda perfeição.
Monteiro de Castro, com muita graça, foi contando:
– “Ninguém se lembra de que o precursor do populismo no Brasil, foi o Mello Vianna. Até, então, as massas não se emocionavam, não formavam caudal, a seguir a vida de seus preferidos, a aceitar-lhes os defeitos como as virtudes, e o se identificarem com os seus chefes, como uma vitória pessoal de cada um dos componentes da onda humana. Mello Vianna tornou-se uma personagem sempre envolvida pela turba de seus admiradores. Quando chegava do Rio, ou de São Paulo, a multidão frenética o ia buscar. Os vivas se sucediam; ele era carregado nos braços do povo, e sua palavra bastava para despertar chamas ardentes em quantos o ouvissem. Certa vez, voltando Mello Vianna de uma viagem ao Rio, foi, como sempre, recebido pela onda humana composta de seus admiradores. Vinha ele saindo da Estação, e Mello Vianna, pelas alturas das cabeças, recebia as ovações.
Assim, radiante, num entusiasmo que se engrossa aos poucos, e se comunicava aos que passavam na rua, ia a turba caminhando, levando na crista da voga o político que primeiro se fez querido no Brasil, pelas grandiosas multidões. O jovem Carlo Drummond vinha passando, quando viu aquele caminhar poderoso de milhares de pessoas unidas numa louvação comum:
– “Viva Mello Viana!”
Drummond, muito moço, era, entretanto, o que ainda é hoje – um ser profundamente irreverente, e original. Teve a irreprimível vontade de discordar. Avançou, heroico, de punho levantado, indo ao encontro à composição cerrada dos partidários do chefe político.
Desenhava-se assim o quadro: de um lado, milhares de criaturas, a dar vivas estrepitosos, tendo em seu meio, e lá no alto o líder Mello Vianna. De outro lado, um rapaz magro e atrevido que avançava contra a força indômita, o punho fechado dos revolucionários. Pois já esse moço perigoso lançava a plenos pulmões contra a massa, deslumbrada de entusiasmo cívico, o desafio:
– “Morra Mello Vianna!”
Ouviu-se uma espécie de urra, qualquer coisa de animalizado, a sair do bojo daquele todo com mil faces. E a massa caiu sobre Drummond, e por ele passou espumando como onda resvalando, raivosa. Na verdade, não houve agressão. O que houve foi passagem. Aquela gigantesca multidão passou pelo corpo de Drummond, com a força e a segurança de um elemento da Natureza.”
Quando Monteiro de Castro, com muito espirito, acabou de contar o caso heróico de Drummond, eu, que sempre tive simpatias por essa figura que retratava bem a política antiga, que era Mello Vianna, fiquei, no entanto, apreciando mais o meu colega Carlos Drummond, o único homem vivo que tem a coragem de desafiar a massa, e dizer NÃO a ela.
Na roda, sorrindo, alguém acrescentou: – Foi por isso que Carlos Drummond nunca mais conseguiu engordar. Ficou imprensado para sempre.”
Para mim, esta foi a melhor farsa trágica da bravura humana.
Duas delicadezas: a crônica e o desenho.