Itabira, a prostituta do capitalismo selvagem
Um artigo de Fernando Duarte Gonçalves*
(Publicado originalmente no jornal O Cometa Itabirano, em outubro de 1980)
Amigo Lúcio,
Recebo sua incumbência com muito pesar, apesar de que acho a ocasião mais do que oportuna. É que você havia me pedido alguma coisa sobre o extinto Pico do Cauê, não foi?
Recolhi algumas anotações históricas (oficiais), juntei o pouco que me ensinaram na escola com os relatos que os mais velhos contam (esses incansáveis visionários), e resolvi colocar tudo num papel naquela noite qualquer, desses tempos de agora.
Pois bem! Segundo estudo de Salvador Pires Pontes em seu livro Nomes Indígenas na Geografia de Minas Gerais, o “Pico” tem seu nome originário da língua hauça ou aussá, africana, e significa “irmão”… pois existem nas imediações da cidade, dominando a cordilheira, dois picos: Conceição e Cauê. Africano também é Bongue, nome de uma das ruas de Itabira, e significa “morro”, “colina”, “ladeira” na língua quimbundo.
O “Cauê”, continua o autor, tinha de altitude 1.386m, e nos córregos que vertem da serra, encontra-se ouro em quantidade.
Geologicamente, o pico é uma estrutura de camadas dobradas por forças orogenéticas, as quais transformaram sedimentos químicos, ricos em quartzo e ferro depositados em ambiente de fundo do mar pré-Cambriano, ou seja, cerca de 4,5 bilhões de anos atrás… Essas forças, tangentes à superfície da terra, transformaram os estratos rochosos em camadas dobradas “metassedimentares”, i.é, sedimentos “metamorfizados”. Alguns geólogos acreditam na origem “biogênica” desta deposição, pois em formações ferríferas bandeadas de bactérias e algas que possivelmente abundaram nesse mar pretérito.
A designação de “Sinclinal” é correspondente ao tipo de arqueamento que sofreram estas rochas e pode-se medir valores de atitudes das camadas, ou seja, direção e mergulho das mesmas, assim como a direção e inclinação do eixo de obra. Conceição seria também uma estrutura semelhante, sendo que em ambas o que é lavrado (leia-se exportado) são altos teores de minério de ferro que ocorrem nas camadas da hematita compacta e itabiritos (bandeamento quartzo-hematita).
Como se vê, há muito o que se falar sobre estas jazidas, e eu fico me perguntando qual a porcentagem de itabiranos que tiveram acesso a essas informações, já que as reservas estão situadas nos quintais da cidade e em vias de exaustão (“minério não dá duas safras”, diria O Passarela).
Tudo bem? Vamos ao que o pessoal sabe (ou não sabe?).
… Que os namorados, naquele tempo, passeavam naquelas alturas do Cauê e faziam deliciosos piqueniques;
… Que as águas brotadas na serra eram límpidas, cristalinas e depositavam ouro em aluviões;
… Que o clima da cidade podia ser indicado para pessoas com doenças bronco-respiratórias, inclusive as águas das fontes do Pará continham propriedades termo-curativas;
… Que a jazida de minério de ferro com teores altos fosse a maior do mundo, e que, na iminência de uma II Guerra Mundial, a jazida poderia suprir o mercado com farto material estratégico no fabrico de tanques e bombas destruidoras;
… Que até tentaram mudar o nome da cidade para Presidente Vargas;
… Que a Companhia Vale do Rio Doce explora o minério em larga escala, sendo que hoje, em menos de oito minutos, caminhões de 170 toneladas são carregados rumo ao britador;
…Que na mina de Conceição esse tempo será ainda menor com instalação do sistema Trolley;
… Que só um pneu dos veículos pesados da CVRD custa, atualmente, a bagatela de 915 mil cruzeiros;
… Que esta mesma Companhia tem caráter nacional e é altamente dependente das multinacionais e do mercado externo, vendendo minério a preço de banana;
… Que ela nunca se propôs a criação de uma escola superior (ou mesmo técnica) de geologia e mineração, o que poderia dar maiores condições de seus empregados e filhos competirem com os aventureiros alóctonos (corra ao dicionário);
… Que as “lagoas de contenção” de rejeito de minério têm sua vida limitada, pois estão sitiando áreas urbanizadas da cidade, além de tornarem estéril o melhor espaço para agricultura (as baixadas e vales abertos);
… Que os melhores cargos dentro da empresa são oferecidos a pessoas que não têm nada a ver com a realidade da cidade;
… Que a maior parte do pessoal que trabalha na mina não vive em condições dignas que lhes assegurem um futuro sem doenças provocadas por atividade mineradora (silicose nos pulmões, por exemplo);
… Que o tempo gasto na montagem das instalações da Oficina Centralizada e no Tratamento do Minério é o mesmo gasto para desmontar;
… Que dinheiro atrai dinheiro na razão direta do dinheiro;
… etc, etc, etc.
Pois muito bem! Essas e outras questões são fáceis de perceber e de tentar explicar, pois a atividade extrativa é inerente ao homem enquanto espécie, desde que o mundo é mundo.
O que não se justifica é uma cidade do porte da velha Itabira do Mato Dentro ser transformada, em tão pouco tempo, em fóssil vivo, vítima da famigerada sanha capitalista (vista do alto, Itabira mais parece uma série de minas a céu aberto, com algumas casas dentro).
Este câncer que atingiu a nossa cidade vai deixar três enormes crateras na superfície de suas terras, as águas podres e ácidas, o clima aleatório e fétido, e alguns milhares de indivíduos tentando reviver o que poderíamos chamar de Prostituta do Capitalismo Selvagem.
Não se sabe ainda nada com relação às crateras (open pitnining, como dizem os gringos) – se vão formar grandes lagos, se vão ser entulhados com o lixo industrial fabricado nas usinas de concentração, etc???
Alguns sugerem o Pró-Álcool do PDS para absorver a mão de obra ociosa após a última máquina ser transferida para Carajás. E por falar em PDS, esse macro projeto canavieiro estará sendo empreendido numa região que, segundo técnicos do Centro Tecnológico de Minas, não tem aptidão para o cultivo de cana-de-açúcar, donde se conclui que o projeto é meramente eleitoreiro.
Pode até ser que o buraco é mais embaixo; mesmo assim, como disse o poeta-maior: “… uma flor nasceu no asfalto, é feia, mas é uma flor” e “de tudo fica um pouco…”
Que esse pouco seja uma semente de cravo vermelho…
*Fernando Duarte Gonçalves é geólogo e itabirano
Prezado Fernando Duarte Gonçalves,
O seu artigo ITABIRA, A PROSTITUTA DO CAPITALISMO SELVAGEM me remete à indignação sentida (manifestada, posteriormente, nos links no final do comentário) na primeira visita à cidade. Imaginei o desaparecimento do Corcovado, no Rio de Janeiro, no mesmo processo do Pico do Cauê. Como dói! A destruição do Brasil está em todas as partes do país. Enfim, “a atividade extrativa é inerente ao homem enquanto espécie, desde que o mundo é mundo” e só poderá ser disciplinada num sistema social de justiça, igualdade e fraternidade. Para isso é imperativo exterminar o capitalismo, seja com quais instrumentos forem possíveis.
http://ofolhademinas.com.br/materia/30535/alucard-agrave-beira-da-morte
http://ofolhademinas.com.br/materia/30553/em-alucard-se-chupa-e-assobia
http://ofolhademinas.com.br/materia/30627/alucard-tritura-o-poeta-antocircnio-crispim
http://ofolhademinas.com.br/materia/30578/maioria-em-alucard-mulheres-satildeo-descartadas
Carlos, é maravilhoso o repeteco do artigo do Fernando. Além de explicar sob o ponto de vista da geologia, o artigo, pelo menos para mim em 1980, foi como uma bomba de pataco. Os pontinhos e pontinhos me permitiram pensar e imaginar. Obrigada Carlos e sobretudo obrigada Nandin. Só faltou a foto Rejeito ao Luar, a minha fotografia na parede.
A foto que diz: ”Carregamento de minério no silo do Alto Pereira”, me parece ser no campestre, atrás do VEC