Mestre Candeia, chama eterna do samba
Lenin Novaes*
“A chama não se apagou/Nem se apagará/És luz de eterno fulgor, Candeia/O tempo que o samba viver/O sonho não vai acabar/E ninguém irá esquecer, Candeia/Todo tempo que o céu/Abrigar o encanto de uma lua cheia/E o pescador afirmar/Que ouviu o cantar da sereia/E as fortes ondas do mar/Sorrindo brincar com a areia/A chama não vai se apagar, Candeia/Onde houver uma crença/Uma gota de fé/Uma roda, uma aldeia/Um sorriso, um olhar/Que é um poema de fé/Sangue a correr nas veias/Um cantar à vontade/Outras coisas que a liberdade semeia/O sonho não vai acabar, Candeia”.
O samba “O sonho não acabou” de Luis Carlos da Vila – compositor que focalizarei em breve na Vila de Utopia – dá a exata dimensão da personalidade do sambista Antonio Candeia Filho, o Mestre Candeia, como amigos, artistas e músicos o chamavam. O talento dele não se restringia apenas à música de qualidade que compunha, mas, também, à militância na defesa intransigente da maior manifestação popular do Brasil: o samba.

Essa postura está consolidada no livro Escola de samba: árvore que esqueceu a raiz, que escreveu junto com Isnard Araújo, em 1978, publicado pela Editora Lilador. O título do livro é direto e enquadra o conteúdo que denúncia o processo de “modernidade” do samba orquestrado por oportunistas e aventureiros, que têm como princípio obter apenas a vantagem financeira. Candeia, em 8 de dezembro de 1975, esteve à frente da criação do Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo. Ele definiu assim o conceito da agremiação: “escola de samba é povo na sua manifestação mais autêntica, pois, quando o samba se submete às influências externas, a escola de samba deixa de representar a cultura de nosso povo”.
Outro exemplo expressivo de manifestação em defesa do patrimônio maior da nossa cultura popular, Candeia assumiu com André Motta Lima, Carlos Sabóia Monte (pai da cantora Marisa Monte, que foi diretor cultural da Portela), Cláudio Pinheiro e Paulo César Batista de Faria, o Paulinho da Viola, em relevante documento entregue à direção da Portela. Os signatários afirmavam que “procuramos focalizar os aspectos que, pela sua importância dentro da escola e pelas implicações que possuem com os desfiles de carnaval, devem merecer prioridade no conjunto de providências que, acreditamos, deverão ser tomadas a fim de que a Portela reassuma a posição de liderança que sempre foi sua, por direito e tradição, no cenário do samba e da nossa cultura popular”.
Bem, prezados leitores, no sentido de abreviar o caso, pois o foco é a arte de Mestre Candeia, creio que a falta de título da Portela, nas últimas décadas, ilustra as ações nefastas dos aventureiros gananciosos. Mas, finalizando, o documento, que podemos avocar de manifesto, vai de críticas construtivas às sugestões, especificando aspectos estruturais de uma escola de samba. A direção da agremiação (e não é privilégio apenas dela, tantas outras estão descaracterizadas) não acatou as propostas, e se descaracteriza cada vez mais, seguindo ladeira abaixo, ou seja, desaparecendo no vácuo. O título de campeã, no Carnaval de 2017, após 33 anos, a Portela teve que dividir por decisão da LIESA.
VIDA E OBRA
Preciso contar que, quando fui diretor cultural da Associação da Velha Guarda das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, criei e editei o jornal Vanguarda do Samba, com o saudoso amigo e jornalista Paulo Francisco Magalhães. A publicação circulou no período de janeiro a setembro de 1997, e, na sétima e última edição teve título Lição de Candeia, ao editorial, além de matéria com fotos mostrando alunos fantasiados do CIEP Antonio Candeia Filho, em Acari; a viúva e os filhos de Candeia: Dona Leonilda e Jairo e Selma.

A diretora do CIEP, professora Maria Augusta, frequentadora das festas de fim de semana das velhas guarda, queria que os alunos conhecessem muito mais sobre o patrono da escola. E aí simulamos atividade com o tema Candeia. Os alunos criaram o samba-enredo e, em alas, desfilaram no pátio da escola, com a presença da saudosa jornalista Lena Frias, Paulinho da Viola, os saudosos Dodô da Portela, Luis Carlos da Vila, Waldir 59, além de Cristina Buarque de Holanda (irmã de Chico Buarque), Arthur Poerner (jornalista e parceiro de Candeia) e João Baptista Vargens, autor da biografia Candeia: luz da inspiração.
A vida e obra de Candeia também são temas dos documentários “Eu sou o povo”, de Luis Fernando Couto, Bruno Bacellar e Regina Rocha; e “É Candeia”, dirigido por Márcia Waltzi. No livro “Velhas histórias, memórias futuras”, o autor Eduardo Granja Coutinho faz várias referências ao compositor. “É samba na veia, é Candeia”, de Eduardo Rieche, venceu o concurso nacional de dramaturgia Seleção Brasil em Cena, de 2007, promovido pelo Centro Cultural Banco do Brasil. O texto ganhou direção cênica de André Paes Leme e direção musical de Fábio Nin, estrelado pelo ator Jorge Maya. E conquistou o prêmio de melhor espetáculo de 2008. Tem ainda o documentário Candeia – sangue, suor e lágrimas, dirigido por Felipe Nepomuceno; e o curta-metragem Partido Alto, de Leon Hirzman, contendo cenas raras das rodas de samba comandadas por Candeia em sua cadeira de rodas.
Antonio Candeia Filho nasceu em 17 de agosto de 1935 e faleceu no dia 16 de novembro de 1978. As festas organizadas pelo pai, Antonio Candeia, na casa em que morou, em Oswaldo Cruz, tinha a presença de muitos sambistas e artistas como Paulo da Portela, Claudionor Cruz, João da Gente, Luperce Miranda, Dino do Violão e Zé da Fome, entre tantos outros. E bem jovem começou a compor músicas, absorvido por diversas influências; e aprendeu a tocar violão e cavaquinho.
Candeia participou do bloco “Vai como pode”, que deu origem à Portela. Compôs o primeiro samba-enredo, “Seis datas magnas”, em parceria com Altair Marinho, para a azul e branco de Madureira, em 1953, que conquistou o título. Venceu outros sambas-enredo: “Festas juninas em fevereiro” e “Legados de Dom João VI”, ambos em parceria com Waldir 59; “Rio, capital eterna do samba” e “Histórias e tradições do Rio quatrocentão”. Fundou a Ala da Mocidade da Portela e, depois, integrou a Ala dos Impossíveis, estimada por Paulo da Portela como a ala que mais deu frutos à agremiação.
Candeia entrou para a Polícia Civil, em 1957, aos 22 anos, e era investigador severo. Tinha o perfil da “autoridade pública”, que abusava do poder, no qual o estado realizava estatística criminal com prisão por vadiagem. Ou seja: “cê não trabalha, então teja preso”. O aspecto policial, hoje, fardado, não mudou sua maneira de garantir a chamada “ordem pública”. A estatística passou a contabilizar a morte de pessoas negras e pardas moradoras de favelas e morros (êpa, essas expressões não são consideradas politicamente corretas), com idade abaixo dos 21 anos.
Foi por causa de uma discussão causada por acidente de trânsito, em 13 de dezembro de 1965, que Candeia acabou baleado por um motorista de caminhão, após descarregar o revólver nas rodas do veículo. Atingido na medula óssea, paralítico, se aposentou na polícia. Passou a se dedicar exclusivamente à carreira artística.
A cantora Elizeth Cardoso elevou às paradas de sucesso “Minhas madrugadas”, de Paulinho da Viola e Candeia. Paulinho considera “o primeiro samba realmente conhecido do grande público que fiz com meu querido amigo Candeia”, que conheceu no final de 1964, quando também já fazia parte da Portela.

A contribuição da obra musical de Candeia ao samba é magnífica. Ele gravou apenas cinco CDs, ainda abertos ao conhecimento do grande público. Na discografia, “Dia de graça”, “Pintura sem arte”, sambas manifesto; “Brinde ao cansaço”, “Expressão do teu olhar”, “Vivo isolado do mundo”, “O mar serenou”, “Eterna paz” (com Martinho da Vila), “Preciso me encontrar”, “Samba da antiga”, “Filosofia do samba”, “De qualquer maneira” e “A hora e a vez do samba” e tantas outras músicas de excelente qualidade poética, melódica e harmônica.
Entre as várias comemorações por ocasião dos 80 anos dele, em 2015, a Renascer de Jacarepaguá desfilou com enredo homenageando o saudoso sambista, tendo o seguinte refrão: “Axé! Candeia, axé!/A luz do quilombo no chão do terreiro/Axé! Irmão de fé/Orgulho do sambista brasileiro”.
Publico abaixo o samba “De qualquer maneira”, feito por Candeia, que mostra a excelente qualidade poética que tinha como compositor:
“De qualquer maneira/Meu amor eu canto/De qualquer maneira/Meu encanto eu vou sambar/Com os olhos rasos d’água/Ou com o sorriso na boca/Com o peito cheio de mágoa/Ou sendo a mágoa tão pouca/Quem é bamba não bambeia/Falo por convicção/Enquanto houver samba na veia/Empunharei meu violão/Sentado em trono de rei/Ou aqui nessa cadeira/Eu já disse eu já falei/Que seja qual for a maneira/Quem é bamba não bambeia/Falo por convicção/Enquanto houver samba na veia/Empunharei meu violão”
*Lenin Novaes, jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o Concurso Nacional de Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta e jornalista Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som – MIS. É Assessor de Imprensa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.