2015

João Sabali*

 Se permanecer firme no leito do rio da vida, a Lei Mística, que é a entidade da vida, e não apenas as torrentes do carma, ou destino, podem conduzi-lo. Estabelecendo uma base inabalável, pode-se obter a liberdade de agir com a própria vontade. (Fundamentos do Budismo)

Não é por nada não, Maria, mas com a tosse que eu tô hoje, você nem me ver queria. Às vezes, Maria, eu sinto que a gente não quer admitir que não está sendo fácil. Não eu e você, tô falando de todo mundo, Maria. Não está sendo nada fácil.

São tempos estranhos, tempos de extremos. Tanto pra sorrir, tanto pra lamentar, você não acha, Maria? É, hoje eu tô bom pra escrever um samba. Um daqueles bem tristes, bem lentos, mas que em algum momento entra um lalaiá feliz, um lalaiá retumbante que de um jeito ou de outro deixa a música feliz ou pelo menos o tom geral dela feliz, quer dizer, as pessoas vão lembrar dela como uma música bonita.

Mas é isso que eu tô dizendo aqui, Maria. Não está sendo fácil e não vai ficar mais fácil, mas é bonito. São tempos estranhos e bonitos. Como tudo na vida né, Maria? A vida é estranha e é bonita, cê tá certa. Você pelo menos sabe que horas são, Maria?

Não, não, com essa tosse é melhor você nem me ligar. É, a lua tá bonita sim. Mas olha, às vezes sinto que chegamos longe demais, você não acha? Pensa bem. Parece data de quando shampoo perde a validade.

Pelo menos no começo dos anos 2000, quando eu era criança e comecei a me interessar pela parte de trás dos rótulos dos shampoos, era nesse tipo de ano que os shampoos venciam. 2015.

São tempos enlouquecidos, mas eu também não quero soar como um saudosista, apesar desse sentimento estar dentro de todos nós, só precisamos de uma certa idade ou de uma certa amargura para que ele de repente brote e transborde pra fora e atinja os pés do transeunte distraído, que cutucará sua esposa e dirá: aí está, amor, um saudosista.

E nessa hora um raio cairá no meio da rua mais tranquila da Etiópia, mas ninguém irá se ferir, pois será de noite e todos estarão dormindo. Pelo menos é assim que eu imagino as coisas, Maria. Não tô com sono, não. E você, Maria?

Eu não vi aquele filme, não tive tempo, é, tempo eu tive, mas pra outras coisas e quando não estava ocupado com essas coisas eu arranjava outras pra fazer, isso quando simplesmente não fazia nada, que aliás é uma das coisas que eu mais gosto de fazer, mas também é uma das coisas que mais me dá medo, sabia?

Por que medo? Por que medo? Não sei, Maria. Às vezes eu sinto uma alegria enorme tomar conta do corpo quando estou em uma loja e tenho que decidir entre passar pela esquerda ou pela direita de uma estante de produtos.

Esse tipo de decisão me alegra. E tem dias que estou sentado no sofá, comendo um pedaço de chocolate e olhando pra algum canto particular do teto e me pego tremendo, quase com febre, de tanto medo, de tanto medo, Maria.

É, vai entender. Você acha que o louco sabe quando está ficando louco? Eu acho que faz parte da magia do louco não se declarar louco, negar até as últimas consequências sua loucura, receber a camisa de força negando e entrar na cela negando e passar os dias tomando remédio negando e ser eletrocutado negando e vagar pelo pátio e pelos corredores negando e ver meteoros rosa rondando o quarto e sair do quarto negando e se emocionar ao agachar e ver de perto uma fileira de formigas marchando em volta da única árvore do pátio que fica mais bonito a essa hora do dia negando.

Não que eu esteja louco mas é que essas coisas têm acontecido comigo, sabe, Maria? É, eu sei que você sabe. Ouvir a sirene que toca no pátio ainda vazio me faz rir. Me faz ter acessos de riso. Já te disse isso, né Maria? E sobre o que aconteceu hoje à tarde, eu já te disse?

É que estava ventando na clínica e um dos pacientes tirou a roupa e acendeu um cigarro e ficou me olhando através da janela, me encarando, como se ele soubesse que eu estou com o peito ruim e não estou podendo fumar e ele dava uns tragos profundos, e continuava me olhando, até que ele começou a se aproximar da janela e ele era um desses pacientes enormes e aquilo começou a ficar bastante esquisito pra usar uma palavra só, e então ele colou sua cara no vidro da janela e começou a assoprar a fumaça e nossa, Maria, nessa hora eu tirei meus óculos, tirei meu jaleco branco e minha calça branca, saí da minha sala, dei a volta, passei pelo corredor e alcancei o pátio para fumar um cigarro ao lado desse paciente, que já não estava lá, mas dentro da minha sala, vestido com um jaleco branco e uma calça branca, de óculos, tossindo sem parar.

Com o pátio vazio eu fumei um cigarro, a sirene tocou, eu gargalhei e agora eu estou aqui. Vem me buscar, Maria?

*João Sabali é jornalista e escritor de São Paulo.

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