Zeca Pagodinho é marca da irreverência no samba
Lenin Novaes*
“Aqui comigo é de 1 a 25/Vamos nessa/Oh, bicheiro, qual é o grupo do talão?/Oh, bicheiro, qual é o grupo do talão?/Quero ver a minha sorte na palma da tua mão/Quero ver a minha sorte na palma da tua mão/Oh bicheiro/Oh bicheiro, qual é o grupo do talão?/Oh bicheiro, qual é o grupo do talão?/Quero ver a minha sorte na palma da tua mão/Quero ver a minha sorte na palma da tua mão/O “1” deu no Avestruz, começou a jogação/E o “2” já deu na águia, que é bicho do patrão/Mas o “3” no burro, quando empaca é turrão/O “4” na borboleta, quando voa faz verão/O “5” deu no cachorro, tem apelido de cão/E o “6” já deu na cabra, que dá leite pro Cristão/O”7” deu no carneiro, que é bicho de São João/Refrão/O “8” deu no camelo, bicicleta de Sultão/E o “9” deu na cobra, que dá bote a traição/E o “10” deu no coelho, perto do capim melão/O “11” deu no cavalo, se não marcha é trotão/O “12” deu no elefante, com sua tromba no chão/Mas o 13” deu no galo, relógio de pai João/Refrão/O “14” deu no gato, todos sabem que é ladrão/O “15” no jacaré, faz sua vida no chão/“16” já deu no rei, todos sabem que é leão/“17” no macaco, pula de galho no chão/O “18” deu no porco, dentro de um caldeirão/Refrão/“19” no dourado, todos sabem que é pavão/O “20” deu no peru, pra morrer toma pifão/“21” já deu no touro, amarrado no moirão./“22” já deu no tigre, anda de pijama não/“23” já deu no urso, é um abraço de um irmão/“24” no veado, todos sabem que é bichão/“25” deu na vaca, e terminou a coleção/Oh bicheiro/Refrão/Faço um milhar invertido, cercado por todos os lados/Se a letra for singela, faço um duque combinado/Oh bicheiro/E aí Gugu, sujou compadre/Engole a isca/Vai devagar, quem joga com os olhos/Só ganha remela”.
A letra de “O bicho que deu” é de Nilton Campolino e Tio Hélio, e está no disco Samba pras moças, de Zeca Pagodinho, lançado em 1995. E, estimados leitores e leitoras da Vila de Utopia, mais uma vez atendo o pedido de um grande amigo que sugeriu a publicação da letra na abertura da matéria sobre Jessé Gomes da Silva Filho, nome de batismo do cantor e compositor Zeca Pagodinho.
O amigo me disse que “o Zeca já exerceu várias atividades, antes de ser artista famoso. Entre elas a de anotador de jogo-do-bicho, contravenção que proporcionou riqueza a algumas pessoas e causou a morte violenta de muitas outras. Trata-se de um aspecto social, econômico, político e cultural da vida carioca que esteve em alta na ditadura militar (1964-1985) e no samba, indo das agremiações carnavalescas à Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa).
É certo que o assunto merece atenção à parte, mas não se pode esquecer-se de certos magnatas do bicho, alguns mortos e outros ainda ativos: Castor Gonçalves de Andrade e Silva (ligado à escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel); Waldemir Garcia (ligado à Acadêmicos do Salgueiro); Anísio Abraão David (ligado à Beija-flor de Nilópolis); Ailton Guimarães Jorge (ligado à Unidos de Vila Isabel e, depois, à Viradouro); Luiz Pacheco Drummond (ligado à Imperatriz Leopoldinense); Natalino José do Nascimento (o Natal da Portela) sucedido por Carlos Teixeira Martins, o Carlinhos Maracanã, na Portela; Hélio Ribeiro de Oliveira (ligado à Acadêmicos da Grande Rio) e Antonio Petrus Kalil (ligado à Estácio de Sá); além de Mário Tricano; Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira; Jorge Romeu, o Jorge Elefante; Ângelo Maria Longas, o Tio Patinhas; e Osman Pereira Leite”.
A trajetória artística de Zeca Pagodinho – ele nasceu em 4 de fevereiro de 1959, em Irajá e foi criado em Del Castilho – começou a partir da gravação da primeira música, “Amargura”, dele e do saudoso flautista e partideiro Cláudio Camunguelo, que integra o repertório do segundo disco do grupo Fundo de Quintal. Aí deixou para trás as atividades de camelô, feirante, office-boy, contínuo e anotador de jogo-do-bicho, como os estudos, na 4ª série. A obra artística de Zeca Pagodinho é recordista em venda de discos.
Nas rodas de samba se mostrava bom versador e, próximo do grupo Fundo de Quintal, caiu nas graças da cantora Beth Carvalho, à qual tem como madrinha-artística. Ela gravou o primeiro sucesso dele, “Camarão que dorme a onda leva”, em parceria com Arlindo Cruz e Beto Sem Braço. E também “Jiló com pimenta”, parceria com Arlindo Cruz. Alcione gravou “Mutirão do amor”, dele com Sombrinha e Jorge Aragão. Junto com Mauro Diniz, Jovelina Pérola Negra, Elaine Machado e Pedrinho da Flor integrou o elenco do disco Raça brasileira, de 1985.
Zeca Pagodinho é título do primeiro disco, gravado em 1986, e que registrou a venda de 800 mil cópias, tornando sucessos “Brincadeira tem hora”, com Beto Sem Braço; “SPC”, com Arlindo Cruz; e “Judia de mim”, com Wilson Moreira, além de “Quintal do céu”, “Cheiro de saudade”, “Quando eu contar”, “Coração em desalinho”, “Se eu for falar de tristeza” e “Casal sem vergonha”. E Almir Guineto, no mesmo ano, incluiu no seu disco “Lama nas ruas”, em parceria com Zeca Pagodinho. Reinaldo gravou “Vem pra ser meu refrão”, parceria de Zeca com Arlindo Cruz; e também “Que pecado”, parceria de Zeca com Acyr Marques e Arlindo Cruz.
Quando lançou o segundo disco, Jeito moleque, a estrada do sucesso se escancarou. No repertório, “Cuidado com a inveja”, de Martinho da Vila e Zé Catimba; “O sol e a brisa”, de Mauro Diniz e Franco; “Feira de Acari”, de Jorge Carioca; “Se tivesse dó”, de Zeca e Nelson Rufino; e “Melhor solução”, de Monarco e Ratinho, entre outras músicas. Depois lançou Patota de Cosme, que inclui “Feriste meu coração”, de Monarco e Ratinho; “No tempo de Don Don”, de Nei Lopes; “Termina aqui”, de Zeca, Arlindo Cruz e Ratinho; e “Menor abandonado”, de Pedrinho da Flor, Zeca e Mauro Diniz. Este samba é quase que obrigatório nos espetáculos do artista. Eis a letra.
“Me dê a mão/Eu preciso de você/Seu coração/Sei que pode entender/E o calçadão é meu lar, meu precipício/Mesmo sendo sacrifício/Faça alguma coisa pra me socorrer/Eu não quero ser/Manchete em jornal/Ibope na TV/Se eu ficar por aqui/O que vou conseguir/Mais tarde será um mal pra você/Não ser um escravo do vício/Um ofício do mal/Nem ser um profissional/Na arte de furtar/Quero estudar, me formar/Ter um lar pra viver/E apagar esta má impressão/Que em mim você vê”.
Zeca Pagodinho conquistou sete discos de ouro e dois discos de platina, registrando público superior a um milhão de pessoas nos shows no Metropolitan, uma das maiores casas de espetáculos, no período 1999/2000. Participou do disco Bate outra vez, em homenagem a Cartola, no qual canta “Minha”, composição de autoria do saudoso fundador e compositor mangueirense. No disco Mania de gente, canta a música título de autoria de Mário Sérgio, “Lente de contato”, dele em parceria com Jorge Simas e Wanderson; “É de Black-tie”, em parceria com Martinho da Vila; “A vida é assim”, de Carlos Senna; e “Não te darei esse prazer”, de Monarco.
Recebeu o Premio Tim 2004 na categoria Melhor Cantor de Samba. E idealizou o disco Quintal do Pagodinho, reunindo vários compositores que admira, como Zé Roberto, Wilson das Neves, Luiz Grande, Dunga, Carlos Roberto e Efson, entre outros. Foi gravado ao vivo no sítio dele em Xerém, distrito do Município de Duque de Caxias. Junto com Rildo Hora e Max Pierre, em 2007, criou o selo fonográfico Zecapagodiscos, ligado à gravadora Universal. Gravou DVD com 22 faixas, nas quais contou com a participação de 44 artistas em duplas, entre eles Nelson Sargento, Jair Rodrigues, Luiz Melodia, Seu Jorge, Lenine, Roberto Silva, Ivan Lins, Leci Brandão, Monarco.
O 19º disco, Uma prova de amor, lançou em 2008, tendo no repertório “Pra ninguém mais chorar”, de Fred Camacho, Dudu Nobre e Almir Guineto; “Não há mais jeito”, de Monarco e Mauro Diniz; “Falas juras”, de Candeia e Casquinha; “Sambou, sambou”, de João Donato e Jorge Mello; “Esta melodia”, de Babu da Portela e Jamelão; e “Pecadora”, de Jair do Cavaquinho e Joãozinho da Pecadora.
Com mais de duas dezenas de discos gravados e incontáveis shows, Zeca Pagodinho tem consagradas músicas, como “Anjo ateu”, parceria com Pedrinho da Flor e Ratinho; “Bagaço da laranja”, com Arlindo Cruz e Jovelina Pérola Negra; “Cavaco e sapato”, com Nei Lopes; “Dez mandamentos”, com Arlindo Cruz; “Garrafeiro”, com Mauro Diniz; “Moenda velha”, com Wilson Moreira; “Partido doce”, com Mauro Diniz; “Talarico, ladrão de mulher”, com Serginho Procópio; e “Zeca, cadê você?”, com Jorge Aragão.
Na segunda edição do Jornal da AIB (Associação de Imprensa da Baixada), de outubro de 1995, publicamos matéria com o artista sob o título Lá em Xerém, na Baixada, Pagodinho vive numa boa, assinada por Nélio Menezes, que exercia o cargo de vice-presidente da instituição, com ilustração do saudoso cartunista Adail. Decidimos ir à casa de Zeca Pagodinho altas horas da noite para entrevistá-lo e ele nos recebeu abrindo um freezer horizontal carregado de cervejas.
O artista estava trabalhando o lançamento do disco Samba pras moças e já tinha vários shows marcados no eixo Rio-São Paulo. Na varanda, o papo correu solto, revelando o apelido e as atividades que praticara para garantir a sobrevivência, ora tendo por perto o cachorro Talarico e o caseiro Otávio Pereira, o Baixinho.
Curioso sobre a Associação de Imprensa da Baixada, expliquei a ele que a instituição, a qual fui o primeiro presidente, fora criada com a finalidade de aglutinar os profissionais em empresas de comunicação em busca de uma identidade e de uma política de comunicação acoplada e sintonizada com os interesses gerais da população da Baixada Fluminense, que vive em condições precárias sem saneamento e água potável. No contexto geral, a AIB exerceu a missão de se articular com as entidades organizadas da sociedade civil e os poderes públicos em favor do desenvolvimento social da região. Além disso, o papel da AIB foi de realizar estudos e pesquisas para contribuir para resolver os problemas dos profissionais de comunicação. Bem, depois de muitas cervejas, a madrugada avançando, nos despedimos, com troca recíproca de êxitos em nossas atividades.
A carreira de Zeca Pagodinho se consolidou, com ele prestando grande contribuição para a preservação e fortalecimento do samba. Quanto à AIB, bem, a associação está inativa, depois de ações e atividades memoráveis, registradas em 14 publicações, encadernadas e postas à consulta da população da Baixada Fluminense na Biblioteca de Duque de Caxias. Valeu a experiência da AIB, marco inédito e histórico numa região de gente rica em cultura, mas, ainda considerada “dormitório” da capital, explorada por aventureiros que se lançam na política.