Vinícius na Argentina

Foto: Reprodução

Maria Julieta

Já não me lembro quando e como conheci Vinícius de Moraes: deve ter sido na casa de Aníbal Machado, naquelas velhas noites de domingo, em que tudo parecia uma festa. Era magro, moço, bonito, com esplendorosos olhos claros. Não sei direito se foi lá, não faz mal: dentro de mim é como se tivesse conhecido desde sempre, desde que me entendo.

Acho que todos os que se aproximaram  dele sentiram impressão semelhante, pois logo de saída Vinícius passava a fazer parte do quotidiano dos amigos, mesmo quando não eram frequentes os encontros, mesmo à distancia e através de largas zonas de silêncio. Comigo foi assim, e também com muita gente: ele se incorporava com delicadeza à mitologia particular de cada um e aí permanência em forma definitiva e natural.

Não era preciso estar ao seu lado para admirá-lo, querer-lhe bem constantemente, saber-se constantemente querida por ele. E depois, como era carinhoso, com que doçura abusava dos diminutivos e distribuía ternurinhas.

Querido Vinícius, era tão bom ver você de vez em quando, vestido com aqueles estranhos ternos de veludo, os safaris coloridos, de boné, rir das suas historias, sorrir perto de você – que tinha um sorriso levemente dentuço –, sonhar ao som das melodias lindas que você cantarolava na sala, com voz pequena e meiga. Vou sentir muita saudade.

Helio Oiticica (1937-1980), do Brasil (Rio)

Se não me lembro do conhecimento primeiro, recordo com nitidez as muitas vezes em que estivemos juntos em Buenos Aires, cidade que acabou adorando Vinícius: todos os seus shows, canções, discos, livros traduzidos foram aqui um sucesso permanente.

De início, porém, só um grupo de intelectuais boêmios e refinados festejava a obra e a figura do poeta. Nessa época, no começo dos anos 60, Vinícius servia como secretario na Embaixada do Brasil em Montevidéu e aparecia em alguns fins de semana, sem avisar.

Revejo-o almoçando em minha casa ou na casa de amigos comuns, pedindo um violão depois do café. Ainda não fazia shows, mas já não podia deixar de cantar. Que beleza a valsinha que tocava sempre e que estava, então, dedicada à filha Susana. Ele mesmo contou-nos mais tarde que, ao precisar da música para a montagem de Orfeu da Conceição, pediu-a emprestada a quem a inspirara e trocou-lhe o nome para Valsa de Eurídice.

Helio Oiticica (1937-1980), do Brasil (Rio)

De uma feita, emendou o almoço com o jantar e este com a madrugada. Percebemos de repente que amanhecia e que estávamos exaustos – todos, menos ele, que continuava cantando, mansamente. Influenciada pelo espirito magico que Vinicius emprestara ao tempo, uma jovem senhora saiu devagarinho do living e foi se deitar na banheira do apartamento. Dou fé que ela não havia bebido: a música, a presença do poeta desencadeavam atos como esse, de inocente extravagancia.

Helio Oiticica (1937-1980), do Brasil (Rio)

Quase nunca Vinicius chegava sozinho e, se o fazia, era sempre em estado de amor. Passava horas descrevendo a escolhida, com uma paixão tão envolvente, que todos participávamos do clima amoroso e achávamos a coisa mais normal do mundo os infindáveis telefonemas internacionais com que, a cada momento, ele procurava amenizar a ausência.

Vinha em geral com a eleita, as sucessivas eleitas – e ninguém poderá esquecer como era suave vê-lo a noite inteira de mãos dadas com a namorada, com a esposa, alisando-a, aconchegando-a dizendo-lhe coisinhas ao ouvido, num enlevo autêntico e profundo.

Seu neto adolescente, que morou aqui e participou de algumas dessas reuniões, observava o avô com embevecimento e acarinhava também a própria namoradinha. Nada chocava, nada parecia forçado em Vinicius: sua atitude diante da vida, dos amigos, das amadas era tão espontânea, tão honesta, que ninguém se surpreendia.

Já famoso, seus fãs portenhos, inumeráveis, faziam questão de estar a seu lado e não lhe davam folga. Ele aceitava com serenidade o assédio. Estou pensando no sábado em que, para reunir a legião de amigos, resolveu preparar uma feijoada imensa no apartamento de uns argentinos.

Helio Oiticica (1937-1980), do Brasil (Rio)

Mandou fazer as compras com antecedência, a farinha, as carnes, a acelga que substituiria a couve, tudo – mas esqueceu-se de recomendar aos donos da casa que pusessem o feijão de molho, de véspera. Os convidados chegaram às 1 hora, bem antes de Vinicius, que saíra tarde do hotel onde se hospedava e fora comprar uma túnica bordada para a noiva.

Biscoitinhos, amendoins, o queijo, o uísque se esgotaram. Na cadeira de rodas, a escritora Maria Rosa Oliver, em jejum, achava tudo divertidíssimo. Fui-me embora lá pelas 8, sem almoçar (nem jantar) e soube depois que a feijoada foi servida à meia-noite, deliciosa.

Só mesmo Vinicius podia fazer coisa desse gênero, sem irritar ou ferir o próximo, sem perder a graça, sem afobar-se, eu diria até com perfeição. Só ele mesmo – um dos homens de maior simpatia humana, mais generosos e encantadores que já frequentei – era capaz de esparramar assim, com simplicidade, a seu redor, afeto, humor e uma inesgotável poesia.

Mas agora que se foi ao entardecer, embalado pelo coro dos amigos (em que também cantavam os ausentes), como é que a gente vai se acostumar, poetinha de todos nós, a ficar por aqui sem você?

[Livro: O Valor da Vida, Maria Julieta Drummond de Andrade. RJ: Nova Fronteira, 1982 – Pesquisa: Cristina Silveira]

 

 

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