Um sonho com Drummond
Ana Miranda*
…acordei com a lembrança de um sonho. Drummond vinha me visitar, ele queria que eu escrevesse nosso encontro…
Me veio um dia o desejo de escrever um livro em que o personagem fosse Carlos Drummond de Andrade. Essa vontade nasceu da memória de meu encontro com Clarice Lispector, que se deu num pequeno livro que escrevi faz alguns anos, no qual procurei a relação de Clarice com o mundo exterior, com a cidade, uma relação muito tênue, quase inexistente.
Ao ler toda a obra de Clarice, pensando no nosso encontro, eu me sentia acolhida em seu mundo, ela não me fazia resistência, era um contato mágico e onírico, ela me recebia com carinho em suas ruas silenciosas, em seu apartamento-prelúdio, em seu telhado de nuvens, e me abria sua alma com um sorriso enigmático. Seu filho foi consultado, leu o livro e disse “Pode publicar”.
Depois desse encontro feliz, feminino, em que ela me ensinou a voar, pensei que deveria buscar meus outros amores literários, e veio de pronto o nome de Drummond. Saí em busca de seus livros que me faltavam, juntei um a um, enquanto o encontro se revelava para mim em forma de ideias.
Um dia abri o seu primeiro livro, com o coração em chamas, e mergulhei na leitura livre e emotiva de suas belíssimas palavras. Mas me ocorreu, num momento qualquer, sem nenhuma razão compreensível, a ideia de que ele resistia ao nosso encontro; talvez estivesse subjacente em suas poesias, talvez o céu existia mesmo e as almas mandem de lá suas mensagens, quem sabe?
A união de nossos nomes precisava significar uma concordância de almas, de postura poética (e ética e política), de fraternidade literária e humana. Eu precisava ser um pouco carlos dentro de mim, e talvez não o fosse.
Recolhi seus livros de volta às estantes, e voltei ao meu outro romance, triste e resignada, mas decidida a respeitar aquela comunicação em fio de bicho-de-seda que foi a nossa linha telefônica.
Passaram-se algumas semanas, eu havia esquecido da tristeza e mergulhara em outros mundos. Numa manhã, entretanto, acordei com a lembrança de um sonho. Drummond vinha me visitar, com suas asas de anjo torto, sua doçura delicada, seus azuis olhos sonhadores, sua estrutura metálica itabirana, sua voz gentil, sua magra mão pálida, e me dizia que eu estava enganada, ele queria que eu escrevesse nosso encontro, e me disse até o nome do livro.
Anotei em algum lugar secreto sua sugestão, mas não me lembro onde. Um dia vou encontrá-la, talvez na minha memória. Tinha algo a ver com pedra. O livro com Drummond reviveu, e está germinando dentro de mim, com sua simbólica autorização. Obrigada, Carlos. De qualquer forma, não vou me furtar a consultar seu arauto-neto, que conheci em Buenos Aires e sorriu para mim.