Um poeta & um teórico na caixa de fósforos
Foto: Marcelo Túlio/Travaglia
Por reginá guerra
Marcelo Dolabela (1957/2020) era um apreciador/conhecedor de haicais. Escreveu duas crônicas sobre haicais. Aqui apresento trechos selecionados dessas crônicas publicadas no jornal Hoje em Dia em maio de 2002.
Haicai: um instante de sabedoria na eternidade – essa forma poética “síntese da síntese” que tão bem foi assimilada pela nossa poesia
Marcelo Dolabela
Aqui no Brasil, tivemos algumas escolas de haicai. As dos japoneses imigrantes (o primeiro navio a chegar ao Brasil foi o Kasato-maru, em 10/06/1908. Um dos passageiros foi o haicaísta: Shuhei Uetsuka), a dos filhos e netos de japoneses que aclimataram o haicai à cultura brasileira, e a do haicai (livre) brasileiro (via: modernistas, poesia concreta e poesia marginal).
Certa feita, ciceroneei uma pesquisadora japonesa pela ronda por livrarias, lojas e sebos de disco.
Por mais de uma vez, ela me disse que o que mais a espantava na vanguarda poética brasileira era o alto valor que damos ao haicai. “Esse amor” era desmedido, pois, segundo ela, o haicai, no Japão, era uma espécie de texto auxiliar para a aprendizagem infantil. Pouquíssimos poetas da vanguarda japonesa usavam o haicai como suporte.
Esbocei uma e outra resposta, um e outro argumento, mas preferi responder com uma moeda semelhante. Disse que também não entendia como os japoneses idolatravam certos artistas brasileiros que, por aqui, são excluídos de qualquer cânone e história. Por extensão, comentamos sobre o estrondoso sucesso que Paulo Coelho faz em países como França, Holanda, Bélgica e Espanha.
Tempos depois, um pouco distante da prática do haicai, tive o insight da resposta. O que nos seduz no haicai é, principalmente, o caráter epigramático, instantâneo, poema-minuto, poema-cápsula, poema-gota tão exercitado pelos modernistas – Drummond, Bandeira, Oswald, entre outros.
No meu segundo encontro com a pesquisadora japonesa, comentei esse viés do nosso haicai. Na ocasião, a presenteei com uma miniantologia de tradução do haicai japonês mais “famoso” por aqui: o “salto da rã”, de Matsuo Bashô, como podemos ver a seguir, à maneira peculiar de vários escritores brasileiros:
Furu-ike ya
Kawazu tobikomu
Mizu no oto
- à tradução literal, pelo português Wenceslau de Moraes:
Ah, o velho tanque! e o ruído das rãs,
atirando-se para a água!…
- à poética, também, de Wenceslau:
Um tanque, um tanque musgoso;
Mudez, apenas cortada
Pelo ruído das rãs,
Saltando à água. Mais nada…
- à de Alberto Marsicano Rodrigues:
velho lago
mergulha a rã
fragor d’água.
4) à de Cecília Meireles:
Velho tanque.
Uma rã mergulha.
Barulho de água.
5) à de Décio Pignatari:
VELHA
LAGOA
UMA RÃ
MERG ULHA
UMA RÃ
ÁGUAÁGUA
6) à de Eico Suzuki:
Ó velha lagoa,
Do mergulho duma rã,
O ruído de água.
7) à de Haroldo de Campos:
o velho tanque
rã salt’
tomba
rumor de água.
8) à citada por Marinho de Azevedo:
Velho tanque:
Uma rã que mergulha.
Ruído de água.
9) à de Millôr Fernandes: (À maneira de Bashô)
Nem grilo, grito ou galope;
No silêncio imenso
Uma rã mergulha – Plóóp!
10) à de Olga Savary:
Sobre o tanque morto
um ruído de rã
submergindo.
11) à de Paulo Franchetti, Elza Taeko Doi & Luiz Dantas:
O velho tanque –
Uma rã mergulha,
Barulho de água.
12 e 13) às de Paulo Leminski:
velha lagoa
o sapo salta
o som da água
* Mallarmé Bashô
um salto de sapo
jamais abolirá
o velho poço.
14) à de Monsenhor Primo Vieira:
No tanque vetusto
Um estalido na água:
– o salto da rã.
15) à de Roberto Muggiati:
Tanque antigo
Uma rã salta –
Ruído de água.
16) e ao haicai de Sengai, citado por Antônio Zago:
Se existisse um tanque aqui-agora,
Eu saltaria,
Para Bashô ouvir meu mergulho.
O haicai de Bashô ainda está presente na perfeita letra que Caetano Veloso fez para um canção de João Donato – “A rã”: Coro de cor / Sombra de som de cor / De mal me quer / De mal me quer de bem / De bem me diz / De me dizendo assim / Serei feliz de flor / De flor em flor / De samba em samba em som / De vai e vem / De verde verde ver / Pé de capim / Bico de pena pio / De bem-te-vi / Amanhecendo sim / Perto de mim / Perto da claridade / Da manhã / A grama a lama tudo / É minha irmã / A rama / o sapo / o salto de uma rã.
Em 1998, H. Masudraa Goga propôs “Os dez mandamentos do haicai”, dentre os quais, estão:
VI – O haicai é poemeto popular; por isso, usa-se palavras cotidianas e de fácil compreensão.
VII – O dono do haicai é o próprio autor; por isso, deve-se evitar imitação de qualquer forma, procurando sempre a verdade do espírito haicaísta, que exige consciência e realidade.
VIII – O haicaísta atento capta a instantaneidade, qual apertar o botão da câmera.
IX – O haicai é considerado como uma espécie de diálogo entre autor e apreciador; por isso, não se deve explicar tudo por tudo. A emoção ou a sensação sentida pelo autor deve apenas ser sugerida, a fim de permitir ao leitor o re-acontecer dessa emoção, para que ele possa concluir, à sua maneira, o poema assim apresentado. Em outras palavras, o haicai não deve ser um poema discursivo e acabado.
X – O haicai é um produto de imaginação emanada da sensibilidade do haicaísta; por isso, deve-se evitar expressões de causalidade, sentimentalismo vazio ou pieguice.
Saiba mais
Marcelo Dolabela foi um poeta de muitos haicais. Ainda em 1994 publicou seu primeiro livro de haicais – um livro-objeto em que, na caixa de fósforos – sim, na Fiat Lux, mais uma metáfora concreta –, ele colocou 100 haicais.
A ideia era mostrar que é possível a poesia dentro de um objeto dos mais simples do cotidiano. Fez uma segunda edição em 2002 e hoje a HAICAIXA é rara, presente nas coleções de quem guardou.
São os haicais da caixinha de fósforos que vamos apresentar aqui na Vila de Utopia. Em gotas homeopáticas a nano poesia do mínimo. Onde o menos é mais. Farei a seleção de 3 haicais por semana, todos da HAICAIXA.
E para começar a série, um fora de série. Um haikai inédito, minha homenagem garrucheira aos leitores da terra de Drummond.
Posso mudar de opinião, mas hoje esse é o meu haicai predileto. Uma síntese da poesia do Marcelo com 1) humor; 2) habilidade para encontrar rimas inusitadas por vezes cruzando idiomas; 3) reverências aos seus mestres, no caso o mestre Bashô que, no século XVII, tornou o haicai forma sublime da poesia japonesa; 4) domínio da técnica poética; 5) conhecimento dos mandamentos dos haicais; 6) escolha de temas caros à poesia, aqui, a lua e o amor eterno.
Amor eterno # 905
A lua num mísero maiô
declama
bashô.
Que saudades do Dolabela e sua erudição suave e generosa!