Tragédias em cidades gaúchas: culpa de São Pedro ou falta de ação?
Foto: Mrcelo Caumors/EBC
Cheias e deslizamentos de terra no Rio Grande do Sul: quem é o culpado? Vamos discutir as causas e possíveis soluções para essas tragédias recorrentes, incluindo reassentamento de populações em risco, reforma urbana e políticas públicas para os refugiados ambientais
Por Heraldo Campos*
EcoDebate – Costumo em alguns textos que escrevo, encerrar com uma frase de um escritor conhecido e libertário para uma grande maioria de seus leitores. Confesso que nunca abri e tentei ler um livro, no bom formato papel, do escritor italiano Umberto Eco. Espero não me faltar tempo, nesse mundo de tragédias climáticas que vivemos no nosso mal tratado Planeta.
De qualquer modo, como assisti, recentemente, na TV por assinatura, o documentário ”Umberto Eco: A Library of the World”, onde um neto do professor e escritor declarou que não havia lido um livro de um autor que o avô recomendara, vou nessa onda dos que ainda estão em falta com a leitura e cito a seguinte frase, porque fui pesquisar um pouco na internet sobre esse grande pensador: “Justificar tragédias como “vontade divina” tira da gente a responsabilidade por nossas escolhas.”
Tragédias, e daí? Será que a culpa é de São Pedro ou de uma “vontade divina” a tragédia pelo que vem passando o povo que vive na maior parte das cidades do Estado do Rio Grande do Sul? Nunca é demais lembrar que várias cidades brasileiras que enfrentam problemas relacionados às enchentes e aos deslizamentos de terra já causaram muitas vítimas ao longo dos últimos anos.
“De um modo geral, as pessoas mais atingidas são as de baixa renda, porque acabam ocupando as áreas inundáveis e as encostas íngremes por falta de opção de moradia. Os terrenos geologicamente e naturalmente instáveis, as chuvas de verão (previsíveis) e a construção de casas sem orientação técnica alguma, se encarregam dos trágicos acidentes. O descumprimento das diretrizes de ocupação do solo (plano diretor) e as vistas grossas ao Código Florestal vigente, por parte do poder público, facilitam a desordem dos assentamentos no espaço urbano.
Está mais do que passando da hora de realizar uma reforma urbana para valer no âmbito dos municípios e resolver essa situação. Nessa reforma seriam realocadas as comunidades que vivem em situações de risco geológico. Se esta medida pode ter um custo aos cofres públicos e envolve interesses políticos distintos num mesmo espaço urbano é o mínimo que se espera de um governo democrático, voltado para atender as reais necessidades da maioria da população.
O cenário em que ocorrem esses tipos de acidentes naturais e/ou induzidos pela atividade humana chega a ser monótono e repetitivo em vários municípios. A falta de infraestrutura urbana, representada pela precariedade de saneamento básico, produz o acúmulo de lixo e entulho nos taludes dos morros e nas várzeas dos córregos, que acelera os processos de deslizamentos e de inundações.
O poder público não pode se furtar e deve enfrentar o problema de frente, empenhando seu corpo técnico no atendimento da população, que inclui planejamento, trabalho de campo e fiscalização permanente. Assim, sem a vontade política por parte dos governantes para atuar nessa área, todo ano vai ser a mesma ladainha: a culpa é de São Pedro.
Vale lembrar que São Pedro não tem controle sobre o fenômeno El Niño, que provoca o aumento da temperatura das águas do Oceano Pacífico deslocando a umidade da Amazônia para o sul do país, e nem sobre as mazelas causadas pelo aquecimento global.” [1]
Tragédias, e daí? O que fazer? [3]. Além do reassentamento de moradias, para que as pessoas tenham uma vida digna e segura, toda a atenção é pouca com os mais desassistidos, para que não se transformem em refugiados ambientais.
“A globalização e a necessidade de consumo, é um dos motivos da repetida devastação da natureza. Por mais que as grandes potências do mundo resistam em admitir, o planeta terra padece da própria intervenção humana. E essa devastação e a necessidade da humanidade de conviver com recursos naturais, gerou um novo tipo de refugiados, os chamados refugiados ambientais.
Essa categoria surgiu pelos inúmeros episódios diários de descontrole e devastação no meio ambiente, por exemplo: tsunamis, acidentes nucleares, seca, desertificação de rios, barragens em rios, poluição de nascentes, aumento de temperatura, falta de chuva e outros tantos motivos que forçam os habitantes abandonarem sua terra de origem, suas raízes e cultura em busca de sobrevivência.
Não é possível mais ignorar que a quantidade de refugiados ambientais no mundo, atualmente, supera os de vítimas por guerras. E hoje, no Brasil, existem muitos lugares que deixaram de ser habitados por não mais possuírem condições naturais de moradia.” [2]
Para encerrar, voltamos ao escritor Umberto Eco com o seguinte pensamento: “A mente desenvolve-se como o corpo, mediante crescimento orgânico, influência ambiental e educação. Seu desenvolvimento pode ser inibido por enfermidade física, trauma ou má educação.”
Fontes
[1] “A culpa é de São Pedro”. Crônica de Heraldo Campos. Livro eletrônico “Por onde a água passa: coleção de artigos”.
https://research.ebsco.com/c/7zh5jk/search/results?q=Heraldo+cavalheiro+navajas+sampaio+campos
[2] “A situação dos refugiados ambientais: sob o olhar da tutela jurídica brasileira”. Artigo de Barbara Cristina de Oliveira Santos.
[3] “Terremotos, e daí?”. Crônica de Heraldo Campos.
https://cacamedeirosfilho.blogspot.com/2023/09/terremotos-e-dai.html?view=magazine
*Heraldo Campos é geólogo (Instituto de Geociências e Ciências Exatas da UNESP, 1976), mestre em Geologia Geral e de Aplicação e doutor em Ciências (Instituto de Geociências da USP, 1987 e 1993) e pós-doutor em hidrogeologia (Universidad Politécnica de Cataluña e Escola de Engenharia de São Carlos da USP, 2000 e 2010).
]
in EcoDebate