“Tire o seu sorriso do caminho que eu quero passar com a minha dor”
Lenin Novaes*
“Tire o seu sorriso do caminho/Que eu quero passar com a minha dor/Hoje pra você eu sou espinho/Espinho não machuca a flor/Eu só errei quando juntei minh’alma a sua/O sol não pode viver perto da lua/Tire o seu sorriso do caminho/Que eu quero passar com a minha dor/Hoje pra você eu sou espinho/Espinho não machuca a flor/Eu só errei quando juntei minh’alma a sua/O sol não pode viver perto da lua/É no espelho que eu vejo a minha mágoa/A minha dor e os meus olhos rasos d’água/Eu na sua vida já fui uma flor/Hoje sou espinho em seu amor/Eu só errei quando juntei minh’alma a sua/O sol não pode viver perto da lua/Tire o seu sorriso do caminho/Que eu quero passar com a minha dor/Que eu quero passar com a minha dor”.
O verso que dá título à matéria, estimados leitores e leitoras da Vila de Utopia, pertence ao samba “A flor e o espinho”, de Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Alcides Caminha, perpetuado na voz de Beth Carvalho. Trata-se de um dos clássicos da música brasileira. Outro clássico de Nelson Cavaquinho, “Juízo final”, foi tema de abertura da novela A regra do jogo, exibida recentemente pela TV Globo, cantado por Alcione que, junto com Beth e o autor, integra a escola de samba Estação Primeira de Mangueira.
Beth, aliás, é a principal intérprete de Nelson Cavaquinho, já tendo gravado mais de 30 músicas de autoria dele, com diversos parceiros. Ela, inclusive, incorporou à sua discografia uma obra considerada pérola rara da música popular: o CD Nome sagrado – Beth Carvalho canta Nelson Cavaquinho, lançado em 2001. Os arranjos e regências são do maestro Ivan Paulo e arranjos de cordas de Fernando Merlino, com participações especiais de Hamilton de Holanda (bandolim), Dirceu Leite (sax soprano e clarinete), Arlindo Cruz (banjo), Sérgio de Jesus (trombone), Dino Sete Cordas (violão 7 cordas), Nicolas Krassik (violinos), Silvério Pontes (flugel e trumpete c/surdina), Altamiro Carrilho (flauta), Zé da Velha (trombone), Conjunto Época de Ouro, Zeca Pagodinho, Wilson das Neves e Guilherme de Brito. No repertório, “Folhas Secas”, “Nome sagrado”, “Luz negra”, “Notícia”, “Minha festa”, “Juízo final”, “Rugas”, entre outras.
O samba “Folhas secas” quase provocou um arranca-rabo entre Beth Carvalho e Elis Regina. É que César Camargo Mariano, pianista, casado à época com Elis (ele é pai dos cantores Maria Rita e Pedro Mariano, filhos de Elis Regina), estava fazendo arranjos para o novo disco de Beth Carvalho, com a aquela música selecionada para integrar o repertório. Em casa, ele tocou a música ao piano. Elis ficou encantada, deslumbrada. Soube que era do Nelson Cavaquinho e obteve a autorização dele para gravar. O disco de Elis Regina foi lançado com a música antes do disco de Beth Carvalho. Ela ficou uma ‘arara’, p…da vida, pois tinha ganho a música inédita do seu compositor favorito para gravar. Bem, a gravação de Beth, com arranjo original de samba, alcançou estrondoso sucesso, ao contrário da gravação de Elis, em ritmo jazzístico, muito mais o estilo dela. Mas, nem por isso, a gravação de Elis perde em qualidade. Ouçam e confiram.
Eis o samba de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito:
“Quando eu piso em folhas secas/Caídas de uma mangueira/Penso na minha escola/E nos poetas da minha Estação Primeira/Não sei quantas vezes /Subi o morro cantando /Sempre o sol me queimando/E assim vou me acabando /Quando o tempo avisar /Que eu não posso mais cantar /Sei que vou sentir saudade /Ao lado do meu violão/Da minha mocidade”.
O Começo
Nelson Antonio da Silva nasceu em 29 de outubro de 1911, no Rio de Janeiro e, na mesma cidade, morreu dia 18 de fevereiro de 1986. No ano passado, portanto, se completou 30 anos de sua morte, um dos mais inspirados sambistas. Filho de Brás Antônio da Silva, músico da banda da Polícia Militar, e de Maria Paula da Silva, lavadeira no Convento de Santa Tereza, que cuidava de seus cinco irmãos: Iracema, Arnaldo, João, José e Atarílio. No início o instrumento musical que tocava era o cavaquinho, originando no apelido artístico de Nelson Cavaquinho e, depois, o violão, que dedilhava na posição quase horizontal, usando apenas o polegar e o indicador. Os músicos Turíbio Santos, Paulinho da Viola e Egberto Gismonti, exímios instrumentistas, se impressionavam com a forma como ele dominava o violão, em estilo inimitável.
Essa postura, voz rouca, me encantou ao vê-lo em show na Noitada de Samba, no Teatro Opinião, na Rua Siqueira Campos, em Copacabana, na década de 1970. Não só Nelson Cavaquinho, mas, também, Dona Ivone Lara, Martinho da Vila, Leci Brandão, Beth Carvalho, Zé Keti, Xangô da Mangueira, Clara Nunes, João Nogueira, Baianinho, Clementina de Jesus, Carmem Costa, Ademilde Fonseca, Adoniram Barbosa e tantos outros artistas, inclusive alguns com carreira consolidada, naquela época.
O espetáculo, às segundas-feiras, organizado por Jorge Coutinho e Leonides Bayer, era programa obrigatório, quando eu deixava mais cedo a redação do jornal Última Hora. À época, o evento superava o caráter de atração musical, reunindo uma plateia ávida por cultura e liberdade, num viés de resistência a ditadura militar que sangrou o país no período de 1964 a 1985. Aliás, leitores e leitoras da Vila de Utopia, significa parte da história do samba que está no livro Noitada de samba – foco de resistência, de Márcia Guimarães (colega de Última Hora e da ABI – Associação Brasileira de Imprensa) e Cely Leal, lançado em 2010 pela Arquimedes Edições.
Bem, o estilo de vida e a obra musical de Nelson Cavaquinho são carregados de fatos inusitados. Boêmio inveterado, os botequins serviam de escritório para compor suas músicas. Ele atravessava a noite e emendava o dia. Guilherme de Brito, seu parceiro mais frequente, dá a exata dimensão do comportamento dele: “Vi o Nelson num botequim de manhã, em Ramos, quando fui trabalhar e, na volta, ele ainda estava lá, dedilhando o violão e cantando, entre goles de cerveja e cachaça. Depois disso mostrei uma parte da música que eu fazia e ele fez a segunda parte. A partir daí fechamos uma sólida parceria”.
Nelson Cavaquinho fazia sambas por prazer, sem se preocupar com dinheiro. Gostava de mostrar suas composições aos amigos nos botequins. Vendeu muitas parcerias de algumas músicas, por necessidade, contrariando os verdadeiros parceiros.
O primeiro disco
O respeitado e admirado crítico musical José Ramos, que ganhou o acréscimo no nome Tinhorão, de Everardo Guilhon, no jornal Diário de Notícias, é um intransigente defensor da cultura popular. No Jornal do Brasil, edição de 4/1/1974, ele publicou crônica sobre o lançamento do disco de Nelson Cavaquinho, com o seguinte título: “A boa palavra de Nelson Cavaquinho”. O compositor já tinha mais de sessenta anos de idade. Escreveu ele:
“Nos últimos anos, com a descoberta dos grandes criadores das camadas populares por parte da juventude de nível universitário, o compositor Nélson Cavaquinho passou a ser reconhecido oficialmente como gênio. Essa fama, porém, começava a perigar porque, apesar da legenda criada em torno da figura do curioso trovador de cabelos brancos faltava uma prova em disco. É essa prova que a gravadora Odeon vem oferecer agora com o LP Nélson Cavaquinho e que constitui, mais do que um documento de genialidade, uma obra de amor. Pela primeira vez, em seus 40 anos de compositor, Nélson Cavaquinho é tratado com a compreensão e o respeito que o seu rústico talento merecia – e estava precisando. Sustentado pelos arranjos discretos dos maestros Gaia e José Briamonte, que em nenhum momento pretenderam ser mais brilhantes do que o compositor, sua voz rouca e seu estranho violão desafiador de todas as escolas podem enfim mostrar que quando o talento é grande, não há fórmulas ultrapassadas. A fórmula de Nelson é o velho samba lírico, construído sobre rasteiras e vigorosas experiências vitais, resultados de toda uma existência aberta às sugestões da frustração e da incerteza, mas, também, da coragem e da poesia”.
E finaliza assim, após descrever a qualidade das músicas do repertório:
“No mais, o que se tem a dizer, é que o long play da Odeon Nélson Cavaquinho, constituindo o mais importante lançamento no campo da música popular brasileira nos últimos tempos, ganhou muito em ser lançado neste entremeio de tempo em que um ano termina e outro desponta: ele vem mostrar, com a força poética e a rude e inventiva música dos sambas do maior compositor das camadas mais humildes do Rio de Janeiro, que o tempo passa, mas o gênio criativo continua”.
Nelson já tinha vida agitada em rodas de choro e de samba quando casou com Alice Ferreira Neves, com quem teve quatro filhos, em 1931. Morando em Brás de Pina, o pai dela o levou a servir na Cavalaria da Polícia Militar, que com o cavalo chamado ‘Vovô’ patrulhava o Morro da Mangueira. Lá ele conheceu Carlos Cachaça, Zé da Zilda (que apresentou a Noel Rosa), Cartola. Após inúmeras detenções no quartel, deu baixa da corporação para evitar ser expulso e, em 1938, separado da mulher, foi morar na Mangueira, em 1952.
A primeira música gravada de Nelson, “Não faça vontade a ela”, em 1939, teve interpretação de Alcides Gerard. Anos depois caiu na simpatia de Cyro Monteiro, que gravou várias de suas músicas. Em público, começou a se apresentar na década de 1960. Só em 1970 gravou o primeiro disco, Depoimento de Poeta, pela gravadora Castelinho. Com mais de meio século de vida, em 1960, conheceu Durvalina, trinta anos mais moça do que ele, sua companheira pelo resto da vida.
A partir de 1960 ele começou a ser conhecido, se apresentando no Zicartola, bar de Cartola e Zica. Em 1965 Nara Leão, apontada como musa da bossa-nova, gravou samba dele. Anos depois, Paulinho da Viola, Chico Buarque de Holanda e Clara Nunes gravaram suas músicas. Em 1968 paticipou do disco Fala Mangueira, com Cartola, Odete Amaral e Carlos Cachaça, e, em 1966, Thema Costa gravou disco com músicas de Nelson Cavaquinho. Um ano antes de morrer, gravou o disco-tributo As flores em vida, produzido por Carlinhos Vergueiro e Cristina Buarque de Holanda, irmão de Chico Buarque.
Morreu na madrugada de 18 de fevereiro de 1986, aos 74 anos, vítima de enfisema pulmonar. A escola de samba Mangueira, no carnaval de 2011, desfilou com o enredo “O Filho fiel, sempre Mangueira”, em homengem ao centenário de nascimento de Nelson Cavaquinho, obtendo a terceira colocação.
A lembrança de Nelson Cavaquinho está eternizada no samba Quando eu me chamar saudade, que compôs com Guilherme de Brito, entre tantos outros clássicos popular que deixou à posteridade:
“Sei que amanhã/Quando eu morrer/Os meus amigos vão dizer/Que eu tinha um bom coração/Alguns até hão de chorar/E querer me homenagear/Fazendo de ouro um violão/Mas depois que o tempo passar/Sei que ninguém vai se lembrar/Que eu fui embora/Por isso é que eu penso assim/Se alguém quiser fazer por mim/Que faça agora/Me dê as flores em vida/O carinho, a mão amiga/Para aliviar meus ais/Depois que eu me chamar saudade/Não preciso de vaidade/Quero preces e nada mais”.
Quando eu penso nas folhas secas caídas de uma mangueira perdida nos versos, me leva sempre na magnífica interpretação da Beth Carvalho.
Foi e será um mangueirence, ☝️ cartola sempre cartola.