STF julga mandantes da tentativa de golpe  e o Brasil tem chance de romper com a impunidade herdada da ditadura militar

Em destaque, os  ministros Alexandre de Moraes e Cármen Lúcia, do STF, no primeiro dia de julgamento

Foto: Victor Piemonte/
Divulgação/STF

Diferente da Argentina, que em 1985 condenou seus ex-presidentes militares por crimes contra a humanidade, o país nunca puniu seus generais-presidentes e torturadores. E, agora, tem a oportunidade de não repetir esse erro histórico

O Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou nesta terça-feira (2), o julgamento da ação penal contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e sete aliados acusados de liderar a tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022. No primeiro dia, o relator Alexandre de Moraes e o procurador-geral da República, Paulo Gonet, deram o tom do que pode ser um divisor de águas na história democrática brasileira.

Moraes foi enfático: “A impunidade, a omissão e a covardia não são opções para a pacificação”. Segundo ele, o respeito à Constituição e o fortalecimento das instituições são os únicos caminhos legítimos para preservar a democracia.

O ministro também denunciou tentativas de coação externa, como as pressões articuladas por Eduardo Bolsonaro nos Estados Unidos e as sanções impostas por Donald Trump, afirmando que “a soberania nacional jamais será negociada ou extorquida”.

Gonet, por sua vez, reforçou que o crime de golpe de Estado não exige assinatura formal. Para isso, basta a articulação consciente para subverter a ordem democrática.

Ele acentuou que Bolsonaro reuniu os comandantes das Forças Armadas para apresentar um plano de ruptura institucional, o que já configuraria um golpe em curso. “Não é preciso esforço intelectual extraordinário para reconhecer que, quando o presidente da República convoca a cúpula militar para formalizar um golpe, o processo criminoso já está em andamento”, declarou.

Segundo o procurador, o golpe só não foi consumado porque não houve adesão dos comandantes do Exército e da Aeronáutica, o general Marco Antônio Freire Gomes e o brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior, respectivamente. Ambos resistiram às pressões e recusaram participar da ruptura democrática.

O único apoio entre os chefes militares veio do então comandante da Marinha, o almirante Almir Garnier, que, segundo Gonet, “prontamente assentiu ao projeto e se dispôs a fornecer tropas”. Garnier está entre os réus do processo e pode ser condenado à prisão juntamente com os demais integrantes do núcleo golpista.

O Brasil diante de sua dívida histórica

O julgamento marca a primeira vez que militares brasileiros de alta patente, generais, almirantes e ex-ministros, são formalmente acusados por atentarem contra o Estado Democrático de Direito.

Além de Bolsonaro e Garnier, estão no banco dos réus Walter Braga Netto, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira, Anderson Torres, Alexandre Ramagem e Mauro Cid. Bolsonaro, em prisão domiciliar, não compareceu à sessão.

A gravidade do momento contrasta com a omissão histórica do país diante dos crimes da ditadura militar (1964–1985). Nenhum ex-presidente militar foi julgado. Nenhum comandante foi responsabilizado.

Nem mesmo o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador confesso e exaltado por Jair Bolsonaro, foi punido pelas suas atrocidades. Casos históricos como o assassinato de Vladimir Herzog e o desaparecimento e morte de Rubens Paiva permanecem sem responsabilização. O plano Parasar, que previa lançar opositores ao mar, só não foi executado porque foi denunciado antes.

A Comissão Nacional da Verdade, criada em 2011, identificou 434 mortos e desaparecidos políticos, mas seus relatórios não resultaram em condenações. A Lei da Anistia de 1979, ampliada no governo Sarney, garantiu impunidade ampla, geral e irrestrita. E, assim, sob o manto da impunidade, o país nunca enfrentou judicialmente seus algozes.

O exemplo argentino e a chance de não repetir o erro

Em 1985, a Argentina fez o que o Brasil evitou: levou à Justiça civil os principais líderes militares da ditadura. Ex-presidentes como Jorge Rafael Videla e Emilio Massera foram condenados à prisão perpétua.

O julgamento foi conduzido por uma equipe jovem de procuradores e uma corte firme, presidida por León Arslanian. Todos enfrentaram ameaças e atentados, mas não recuaram. A Argentina reconheceu seus crimes e puniu seus algozes.

O Brasil, por sua vez, escolheu o esquecimento. E por pouco não repetiu a história. Como destacou Paulo Gonet, o golpe só não se concretizou, repita-se à exaustão, porque não teve apoio do Exército e da Aeronáutica, ficando apenas com o assentimento da Marinha.

Se tivesse avançado, o país estaria hoje sob uma nova ditadura, comandada por um capitão reformado e seus generais aliados.

Justiça tardia ainda é justiça

O julgamento da tentativa de golpe é mais do que um processo penal. É uma oportunidade histórica que o país não pode perder mais uma vez. Com ele, o Brasil pode, enfim, romper com a tradição da impunidade e afirmar que crimes contra a democracia não serão tolerados.

No segundo dia de sessões, as defesas dos réus, incluindo Jair Bolsonaro, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Walter Braga Netto, devem se apegar ao indefensável. A estratégia jurídica já se desenha: cada um tenta tirar o corpo da reta, alegando desconhecimento, desvinculação dos atos de 8 de janeiro ou supostos vícios processuais. Há sinais claros de que alguns réus podem tentar transferir a responsabilidade para outros, numa tentativa de fragmentar o núcleo da trama e diluir a culpa individual.

A defesa de Bolsonaro, por exemplo, pretende alegar que os atos foram “meramente preparatórios” e que não houve consumação do golpe. Com essa linha de defesa, ignora que, como afirmou o procurador Paulo Gonet, o crime já estava em curso no momento em que o presidente convocou os comandantes militares para formalizar a ruptura institucional.

Gonet foi categórico: o golpe só não se concretizou porque não teve apoio do Exército e da Aeronáutica, cujos comandantes, repita-se mais uma vez, general Marco Antônio Freire Gomes e brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior, resistiram às investidas. O único que assentiu foi o então comandante da Marinha, almirante Almir Garnier, hoje réu e potencialmente condenado.

A Corte, como afirmou Alexandre de Moraes, não se curvará a pressões internas nem externas. Se houver provas acima de qualquer dúvida razoável, os réus serão condenados como exige a Constituição e como espera a sociedade brasileira.

A democracia brasileira, ainda frágil e marcada por cicatrizes do passado, precisa dessa resposta clara e firme. Porque justiça tardia ainda é justiça, desde que não se transforme em mais uma oportunidade perdida.

A história já mostrou o preço da omissão. Repeti-lo agora, diante de uma tentativa explícita de golpe, não seria apenas um erro, mas uma farsa institucional. E o Brasil não pode mais se dar ao luxo de fingir que não viu, mantendo-se a impunidade.

Foto: acervo pessoal

*Valdecir Diniz Oliveira é cientista político, jornalista e historiador

**Com informações da Agência Brasil, Folha de S.Paulo e Carta Capital.

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