“Somos ondas do mesmo mar, folhas da mesma árvore, flores do mesmo jardim.”

A Vila de Utopia, neste momento de DISTOPIA, apresenta uma reflexão do maior cronista brasileiro sobre o poeta Carlos Drummond de Andrade, um itabirano do mundo.

A intenção é para distrair, fazer mais leve a leitura entre os artigos emergentes sobre a nova coronavírus e a maior peste – nunca antes vista na história do Brasil – o presidente Miliciano, pestilento, cruel, canibal, predador, das trevas… (Cristina Silveira, pela transcrição e indignação)

Reflexões sobre o anjo torto

Rubem Braga

Um homem magrinho de roupas escuras e de pequenos olhos verdes ou azuis atrás dos óculos intelectuais.

Não sou amigo de Carlos Drummond de Andrade, nunca tomei um chopp com ele nem lhe pedi 10 mil reis emprestado ou sua opinião sobre André Gide.

Sei que ele nasceu em Itabira do Matto Dentro, sei mais o seu emprego (secretário particular do dr. Capanema) e seu estado civil (casado e pai). Apenas quatro ou cinco vezes apertei a sua mão, e sempre no gabinete do secretário do Interior – largo – moderno – onde ele desliza como quem roga mil desculpas ao leão do tapete por se ver na contingencia de pisar em sua calda amarela.

Tem um desagradável modo de falar (baixo e depressa) e é um homem antipático.

Nasceu ouvindo ordens – ele mesmo confessa – de um anjo torto, desses que vivem na sombra.

Foi esse anjo torto que escreveu Alguma Poesia e outros poemas que vieram depois.

Esse anjo torto, esse anjo torto de óculos, escreve coisas infantis e amargas.

Foi a vida que o entortou e lhe pôs óculos, mas ele permanece anjo, não anjo do bem, não anjo do mal, e sim anjo não previsto pela bíblia, filho do asfalto, nascido entre roncos de motores e fumaça de gasolina.

Poderia citar dele poemas muito belos, como A Sombra das Moças em Flor, que é belíssimo, mas prefiro transcrever estes versos sem importância, mas tão significativos do jeito dele escrever:

Música

Uma coisa triste no fundo da sala.

Me disseram que era Chopin.

A mulher de braços redondos que

[nem coxas

Martelava na dentadura dura

Sob o lustre complacente.

Eu considerei as contas que era

[preciso pagar,

os passos que era preciso dar,

as dificuldades…

Enquadrei o Chopin na minha

[tristeza

e na dentadura amarela e preta

meus cuidados voaram que nem

borboletas.

Nestes poucos versos há Chopin, braços, coxas, dentaduras de piano, contas a pagar e borboletas. Estas borboletas que voam no último verso recebeu as cores da dentadura do penúltimo. São amarelas e pretas, funéreas, pequenas, inquietas e inquietantes. Assim é a tristeza do anjo torto, e a vida é um cavalheiro em cartola elas – as borboletas – saem aos milhares enquanto o pobre anjo arregala os olhos cândidos.

Tenho a impressão de que o poema transcrito não agradará à maioria das pessoas. São versos feios, tristes, medíocres, sem ritmo, sem vibração quase sem poesia.

A mim também não agradam certos poemas de Carlos Drummond de Andrade. Ele tem um ar antipático.

Sua poesia é bebida que se acostuma para sempre a beber. Às vezes é ambrosia, às vezes absinto, às vezes cachaça.

Pode ser também água límpida dessas que escorrem cantando do cimo das montanhas eternas.

 

 

 

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