Risco de retorno da febre amarela urbana cresce com aumento de casos de contaminação nas cidades

Já são cinco mortes confirmadas por febre amarela em Itabira, informa a Secretaria Municipal de Saúde. Em todos os casos, as vítimas não se imunizaram. Um sexto óbito com sintomas da doença ainda está sendo investigado pela Fundação Ezequiel Dias (Funed), em Belo Horizonte.

Rosana Linhares, secretária de Saúde: “só imunizando toda a população evitamos mais mortes e o risco do retorno da febre urbana” (Fotos: Carlos Cruz e acervo do ESP)

A cidade registra ainda 13 internações com suspeita da doença, mas que ainda não tiveram diagnóstico confirmado. Só neste ano, 42 casos suspeitos foram notificados em Itabira.

“Considerando que a febre amarela é uma doença gravíssima, não entendo porque algumas pessoas ainda têm resistência em tomar a vacina, que é o único meio de não se contrair a doença. Precisamos com urgência atingir 100% de imunização das pessoas que não têm contraindicação para tomar a vacina”, diz a secretária de Saúde, Rosana Linhares.

Na medida em que aumenta o número de casos de pessoas contaminadas pela febre amarela silvestre, e que residem na cidade, cresce também o risco de retorno da febre amarela urbana, erradicada no país desde 1942. Como se sabe, a versão silvestre da doença é transmitida pelos mosquitos Sabethes e Haemagogus, que vivem nas florestas, nas copas das árvores.

Mas ao picar uma pessoa contaminada, o mosquito Aedes aegypti, que prolifera nas cidades, em Itabira por todos os bairros, pode voltar a transmitir a doença. E aí seria uma catástrofe de proporção desconhecida.

Mosquito vetor deve ser combatido sem trégua

Em Itabira, o último Levantamento Rápido do Índice de Infestação por Aedes aegypti (LIRAa), realizado entre os dias 8 e 12 de janeiro, registra índice médio de infestação de 6,7%.

Trata-se de uma situação extremamente grave, propícia ao retorno da variável urbana da doença – e não só do agravamento das arboviroses dengue, chikungunya e zica, que são também doenças que preocupam, mas sem a letalidade da febre amarela.

Eliminar focos do mosquito é tarefa urgente

As condições para que isso ocorra já estão presentes com a proliferação de focos do Aedes aegypti por toda a cidade. Para o Ministério da Saúde, o índice de infestação de 6,7% é de alto risco, acendendo-se o sinal de alerta quando os índices ficam entre 1% e 3,9%. Imagine então como está a situação em Itabira.

Só com a vacinação em massa de todas as pessoas que não têm contraindicação é que se pode evitar que o Aedes aegypti volte a transmitir a doença, como ocorria no início do século passado, como conclama a secretária de Saúde. Daí que é preciso também eliminar com urgência os focos do mosquito.

A Prefeitura diz contar com 42 agentes de saúde e controle de endemias, todos mobilizados e atuando no combate dos focos do mosquito na cidade. Mas é preciso que a população também faça a sua parte, não deixando caixas d’água, vasilhames, piscinas ou quaisquer recipientes destampados, acumulando água.

Falta de saneamento levou à epidemia na virada do século 19 

O saneamento básico é também fundamental para que se impeça o retorno da febre amarela urbana. Foram justamente as precárias condições de saneamento básico no país que propiciaram a eclosão da epidemia da febre amarela urbana no fim do século 19.

Falta de saneamento e lixo disposto inadequadamente são condições propícias para proliferação de vetores

Na ocasião, o mundo todo recomendou aos seus patrícios para que não viessem ao Brasil, que recebeu a alcunha de “túmulo dos estrangeiros”. E dos brasileiros também, que não tinham como escapar da doença. A febre amarela era até então transmitida pelo Aedes aegypti, o que só foi descoberto anos mais tarde.

Foi com a criação do Serviço de Profilaxia pelo médico sanitarista Oswaldo Cruz, à frente da diretoria-geral de Saúde Pública, que focos do vetor foram eliminados – e a doença passou a ser controlada.

Entretanto, a febre amarela urbana só foi erradicada anos depois, a partir de 1937, quando o país desenvolveu a vacina para imunizar toda a população urbana. É o que precisa ser feito agora com o surto da doença na versão silvestre. A vacinação é a única forma de se evitar o óbito pela doença, assim como é necessária para impedir o retorno da febre amarela urbana.

Se isso ocorrer, a tragédia assume proporção nunca vista no país, dadas as condições favoráveis da proliferação do vetor Aedes aegypti, como também pelo aumento populacional.

Modelo autoritário

O modelo de ação das brigadas de mata-mosquitos era autoritário, com os agentes entrando à força nas residências para destruir os locais de desova do mosquito. Embora tenha sido muito criticado, o certo é que surtiu efeito. Desde os anos 1920 não houve mais surto epidêmico nas cidades. E a febre amarela urbana foi oficialmente considerada erradicada em 1942, também com a vacinação em massa da população urbana.

Jayme Benchimol, historiador

E agora, em pleno século 21, o risco de retorno da febre amarela urbana é real – e assustador, pelo número altíssimo de morte que pode acarretar. “A febre amarela urbana inspira pânico por causa dessa memória coletiva, essa lembrança inconsciente desses tempos calamitosos da epidemia urbana”, afirma o historiador Jaime Benchimol, da Fundação Oswaldo Cruz,

Em entrevista à revista História, Ciências e Saúde, do Instituto Manguinhos, ele também sustenta que o risco de retorno da febre amarela urbana é real. “Temos conhecimento de sobra, mas não temos vontade política de enfrentar a situação”, lamenta.

São Simão, em São Paulo, teve mais da metade de sua população dizimada

São Simão, interior de São Paulo, no início do século passado: Emílio Ribas provou da secreção de um doente para demonstrar que a doença não era contagiosa (Acervo: Estado de S. Paulo)

Essa memória coletiva da doença é decorrente do surto epidêmico ocorrido entre 1896 e 1903. A então pequena vila de São Simão, no interior de São Paulo, registrou os primeiros casos da doença, que virou epidemia. “O cemitério estava quase lotado e ninguém sabia como a doença se propagava. Uns diziam que era por contágio direto, enquanto outros que era pelo ar”, conta a historiadora Fernanda Pialarice.

Famílias inteiras fugiram de São Simão com medo da moléstia desconhecida. A sua população, que era de 4 mil habitantes, após três epidemias sucessivas, foi reduzida para 2,5 mil pessoas, conforme registro do jornal O Estado de São Paulo, de 8 de maio de 1897.

Emílio Ribas, com a mulher Maria Carolina Bulcão: foi ele quem descobriu o vetor transmissor da febre amarela (Foto: acervo ESP)

As condições de saneamento eram precárias, mas ainda não se sabia como a doença era transmitida. “Acreditava-se que a doença era contagiosa e transmitida por contato. Passavam cal nos trens de passageiros que chegavam, porque achavam que era um meio de higienizar. Antes de descer do trem, as pessoas tinham que pisar nesse cal”, relata a historiadora.

A orientação do governo era também para que bagagens de viajantes fossem desinfetadas. Os focos do mosquito Aedes aegypti só passaram a ser eliminados quando, anos mais tarde, o médico sanitarista Emílio Ribas, fundador do Instituto Butantã, descobriu que esse era o vetor que transmitia o vírus da febre amarela. Trata-se desse mesmo mosquito do qual Itabira anda infestado, hoje causando “só” dengue, zica e  chikungunya.

Anos depois, em 1902, ainda se acreditava no pequeno povoado de São Simão que a febre amarela era contagiosa. Enviado a São Simão, a historiadora registra que Ribas, para provar que a doença não era contagiosa, protagonizou uma cena que se tornou famosa: colocou o dedo nas secreções de um paciente com febre amarela, levando-o à boca. Ele já sabia que era o mosquito Aedes aegypti o vetor do vírus transmissor.

Trata-se do mesmo vetor que há tanto tempo deixou de transmitir a doença no país, com a erradicação da febre amarela urbana. E que hoje prolifera em Itabira, e no país, com risco de voltar a transmitir o tão temível vírus que pode levar ao óbito em mais de 30% dos casos de contaminação.

Fatores climáticos também podem levar ao retorno da febre amarela

A proliferação do vírus da febre amarela silvestre é atribuída a fatores climáticos, outra ameaça que pode trazer de vota a febre amarela urbana. Como se sabe, calor e chuva são condições propícias para a reprodução do Aedes aegypti, que é um dos principais vetores das doenças virais no meio urbano.

Além disso, explica reportagem do site Ecodebate, ações humanas como o desmatamento das florestas perturbam o equilíbrio ecológico da cadeia que ocasiona na contaminação humana pela doença. A consequência é que, mais de 70 anos depois da erradicação da febre amarela nas cidades brasileiras, a doença pode sair das áreas rurais e retornar aos centros urbanos, por meio do Aedes aegypti.

Anna-Bella Failloux, pesquisadora do Instituto Pasteur

“O risco é muito grave”, considera a diretora de pesquisas em virologia do Instituto Pasteur, da França, Anna-Bella Failloux, especialista em arboviroses, que são as doenças transmitidas por mosquitos.

Ela vê com preocupação a ocorrência da doença em localidades rurais próximas das cidades, além de casos de mortes de pessoas que não estiveram em áreas de risco.

“Isso está relacionado a uma perturbação ecológica. O vírus circulava nas populações de macacos e mosquitos que não picam o homem. Mas um dia esse equilíbrio foi perturbado e, em vez de só picar o macaco, o mosquito passou a picar também o homem”, explica a pesquisadora francesa.

“Essa perturbação fez com que hoje estejamos assistindo à saída da febre amarela da floresta e uma urbanização da doença. Se a febre amarela urbana voltar às cidades brasileiras, será uma catástrofe”, alerta.

Risco é maior com o calor  

Cyril Caminade, pesquisador da universidade de Liverpool

Com o calor, o risco é ainda maior. É que, com as altas temperaturas o vírus se desenvolve mais rapidamente dentro do mosquito vetor, tornando-se muito mais infeccioso nessas condições do que em baixa temperatura.

“Quando não está tão quente, ele morre antes de transmitir o vírus”, explica o pesquisador da Universidade de Liverpool e do Instituto das Infecções e de Saúde Global, Cyril Caminade, na mesma reportagem do site Ecodebate.

“Outro aspecto é que o ciclo das larvas até se tornarem mosquitos adultos depende da temperatura. O ciclo se acelera no calor e nos períodos de chuvas.” Segundo ele, o saneamento básico é fator crucial para que se evite o retorno da febre amarela urbana.

“É preciso analisar a ecologia do mosquito. O Aedes aegypti é um mosquito urbano, associado à água mal condicionada, com problemas de saneamento básico. Portanto, ele é atribuído mais ao desenvolvimento econômico de uma cidade”, constata Anna-Bella, do Instituto Pasteur.

 

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