Retratando um poeta

Sylvio da Cunha*

No tumulto e na vida apressada das cidades devorantes, a palavra adquire um novo valor. O palrar onipresente e imperioso das máquinas, a tempestade de letras impressas, provocaram uma manifestação de pudor desconhecido nas palavras que vêm do âmago da inteligência. Só é possível ouvir com os olhos e é na ilha providencial de Bach, de Mozart, de Beethoven, que começamos a enxergar com os ouvidos.

Sem tempo, nem ócios para o desespero ameaça-nos o assédio do puro, do perfeito tédio, esse segundo Valery, não se nutre de infortúnio ou invalidez, mas substancialmente é a própria vida que enfim certa se vê a si mesma, quando macula o contato da verdade.

Ao resultado da grande aventura de pensar, ameaçando a inexorável lucidez do horror de ser, devem contrapor-se as ebriedades que brotam do amor, do ódio, da avidez do sentimento de poderio.

E logo nos iludem os sofistas de Valery que a mais nobre da embriaguez é a que vem do nosso pleno livre poder de agir, em suma, o abandono da liberdade de juízo, duvidosa e enganadora, pela liberdade de movimento, a única verdadeira, a mais bela das liberdades na sua forma mais alta e poderosa – a dança.

Divina é, portanto, a origem da linguagem. Nela Deus se revela, e as ideias eternas, ao espirito humano. Que fazer, sem o verbo que nos conduza às realidades imutáveis? Eis porque a nossa pequena noite habitual deve ficar imensa de festa quando a galera solar chega de mundos desconhecidos carregada de poesia.

Um poeta que fala é o maior presente dos deuses para os pobres mortais. Um livro de verdadeira poesia tem um lugar de honra maior ao lado do pão nosso de cada dia.

Acervo: MCS

Fazendo o retrato do poeta Carlos Drummond de Andrade, não temos tempo de aludir à sua semelhança física com Maurice Ravel, também como o outro, atraído pela concisão e pela precisão de uma poesia quase em termos matemáticos.

Em ambos o olhar frio e afiado como uma lâmina atravessa muros intransponíveis, cidadelas de silêncio, intimidades subterrâneas, onde há uma poesia insuspeitada e rara.

Não obstante o sentido tão pessoal da sua obra, Carlos Drummond de Andrade em sua poesia é uma confluência em que se encontram um refinamento de alta experiência e uma espontânea simplicidade, um fundo comum dos homens e das coisas.

Por isso ele tem sido considerado com exatidão o poeta mais representativo da sua época, o que mais elementos ele traz do sentir geral e o que melhor pode ser compreendido por todos. Isso não é mais do que a justa consequência da sua prodigiosa assimilação de toda a vida que o cerca.

Posto que tem uma sensibilidade só comparável a de um implacável radar, é mesmo uma poderosa estação receptora de tudo o que acontece no mundo, nas profundidades das consciências e mesmo no mais humilde canto de quintal, onde cresce a ervinha miúda. Mas o espetáculo, longe de desinteressar-lhe, apenas arma o seu espirito de escudo do ascetismo.

Sinto que o tempo sobre mim abate

Sua mão pesada. Rugas, dentes, calva…

Uma aceitação maior de tudo,

E o medo de novas descobertas.

Há muito suspeitei o velho em mim,

Ainda criança, ele me atormentava.

Hoje estou só. Nenhum menino salta

De minha vida para restaurá-la.

Experiências se multiplicaram:

Viagens, furtos, altas solidões,

O desespero, hoje cristal frio,

A melancolia, amada e repetida

…………………………..

Já não era o furor dos vinte anos,

Nem a renúncia às coisas que elegeu,

Mas a penetração no lenho dócil,

Um mergulho em piscina sem esforço,

Um achado sem dor, uma fusão,

Uma inteligência do universo

Comprada em sal, em rugas e cabelo.

 Há um novo romantismo no ar e nas almas. Um mesmo amor da natureza, uma aceitação de sofrimento, sem revolta alguma, um sentimento do passado, uma esperança no futuro que abafam o presente.

Outra há de ser, porém a sua essência quando os nossos sofrimentos, as nossas, as nossas misérias privadas parecem ínfimas e ridículas diante da imensidade de catástrofes que desabam sobre cidades, países, exércitos, multidões.

E este é bem o sentido da obra de Carlos Drummond de Andrade: uma piedosa, uma amorosa compreensão da humanidade e das suas dores sentidas verdadeiramente através da história de uma consciência e de seu drama, própria, a própria consciência do poeta. Para mim, é cristão o espírito poético de Carlos Drummond de Andrade

[Letras e Artes, 20/6/1948. Hemeroteca da BN-Rio]

CDA por CDA, 1973

 

Carlos Drummond de Andrade (Itabira do Mato Dentro, 31 de outubro de 1902 – Rio de Janeiro, 17 de agosto de 1987)

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