Retalhos de Crônicas

Aurora Collegial, nº. 184 –  Ano XIV, Nova Friburgo, 14.4.1918.

Vida Nova, por Carlos Drummond Andrade.

Cá estamos, neste grande Colégio, de novo entregues ao estudo, com a alma povoada de esperanças mirificas e sonhos maravilhosos. Com a emoção natural que nos desperta o raiar de uma vida nova, com a saudade que nos infunde a distância, nós nos entregamos aos livros. Começaram as aulas. De toda parte dizem: é preciso estudar. Pois estudemos!

Colégio Anchieta, Nova Friburgo (RJ), onde Drummond estudou e foi expulso “por insubordinação mental” (Acervo: Cristina Silveira)

É a argamassado com heroísmo do nosso sacrifício e a força da nossa vontade que o futuro ha de vir brilhante, como num conto de fadas, espalhando a felicidade. Estudar! É de que precisamos, para viver, e é o que fazemos aqui. Decerto, grandes tristezas nos avassalam, pois deixamos os nossos saudosos lares; mas grandes alegrias nos prenderão, no fim do ano letivo, ao voltarmos à terra natal, risonhos, felizes, com o nosso esforço premiado, com a nossa abnegação recompensada, com a consciência de ter cumprido o nosso dever. Animando-nos, fortalecendo-nos, a recompensa ha de vir, para iluminar com sua luz de aurora. Imersos no estudo, gozaremos serenas alegrias, tendo a impressão de que estamos num universo de luz, onde palpitam luzeiros mágicos e fosforescências astrais; onde soes radiosos fulguram e brilham estrelas magicas; enfim, teremos a impressão de que estamos num reino encantado, que só a mão omnipotente de Deus poderia criar. É belo o estudo! Parece aquela arvore do Jardim das Hespérides, que dava frutos de ouro; é uma cornucópia de felicidades, um manancial de venturas.

Pensando em tudo isso, todas as nossas incertezas se dissipam e, possuídos de uma vontade de ferro, nos entregamos aos livros. Portanto, agora que estão abertas, de par em par, as hospitaleiras portas do Colégio, nós, iniciando os nossos estudos, com a alma cheia de fé e de esperança, louvamos a Deus, cuja bondade paternal nos proporciona tantas venturas, e abrimos o nosso coração, para que nele penetre a chama do amor divino.

Que as nossas preces subam, puras e sinceras, até à azul esfera, para que, em o decurso do ano, tenhamos a benção de Deus, protetor dos nossos estudos, dos nossos trabalhos, das nossas esperanças, da nossa vida. E que sempre, sempre, estenda sobre nós suas brancas azas o anjo da Esperança, puro e carinhoso, fazendo desabrochar em nós as rosas do sonho, nesta nova vida.

Depois ao voltarmos, lá no fim do ano, para o nosso estremecido torrão natal, que alegrias puras sentiremos, que contentamento ideal! …

Só de pensar, Minh ‘alma sente a emoção de um gozo inenarrável e divino, a emoção de um prazer extraordinário, e se desfaz em ondas de alegria.

Comentários:

“Comentário sobre o início do ano letivo. É a mais antiga peça de CDA impressa em letra de forma. Precede de um mês o poema-em-prosa “Onda”, tido como a mais remota produção editada de Drummond. As composições estampadas no Aurora Collegial, órgão dos alunos do Colégio Anchieta, dos padres jesuítas em Nova Friburgo, são inteiramente desprezadas pelo autor, que se queixa, inclusive, de emendas e acréscimos alheios à redação original, feitos pelos responsáveis pela publicação. Mesmo assim, achamos conveniente registrar estas composições, pois evidenciam, como serem as mais antigas, os primeiros passos de CDA, esboço válido de seu aprendizado. ” (Py)

“As prosas colegiais de Carlos Drummond de Andrade”, Vida nova e Maio denunciam a inexperiência e a ingenuidade de um principiante, e as restantes, reagiam pela justeza, pela medida, pela elegância, pela descontração contra a solenidade, a pompa, o derrame sentimental, o foguetório verborraico dos prosadores da época”. (AS)

“Nessa contradição da vida nem mesmo Deus escapa, que na infância do poeta é visto como a razão de seu viver, levando a desejar a imitação da vida dos santos e da vida de Cristo, momento que coincide com a sua estada no Colégio Anchieta dos jesuítas, numa espiritualidade que o jovem Carlito iria sentir como “obediência” cadavérica, de negar a própria vontade e sob risco de condenação ao Inferno. Ali com sua participação no “Aurora Collegial”, um jornal destinado a interação dos alunos do colégio que iria consolidar sua paixão por escrever, chegando mesmo a ser laureado com “certames literários”. Seu primeiro escrito foi em abril de 1918, quando escreve “Vida Nova”, um comentário ao início do ano letivo, já imbuído do catolicismo que havia mergulhado no colégio. ” (AVB)

(Pesquisa, organização e compartilhamento: Cristina Silveira)

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