Resistir em silêncio, insistir na memória: dominação minerária e formas cotidianas de resistência em Itabira
Foto: Carlos Cruz
“Ao insistir em performar a sua ausência, a população de Itabira denuncia a ficção do salvamento e afirma, mesmo sem palavras, que a vida não pode ser ensaiada entre sirenes, outdoors e comunicados de marketing. Sua recusa é resistência! Sua ausência é denúncia!”
Ana Gabriela Chaves Ferreira*
No dia 23 de abril, a mineradora Vale, em parceria com a Defesa Civil Estadual e a Defesa Civil Municipal, realizou um simulado de emergência envolvendo as barragens de rejeito Itabiruçu, Conceição, Rio do Peixe, Cambucal I, Cambucal II e Sistema Pontal.
O evento faz parte do Plano de Ação de Emergência para Barragens de Mineração (PAEBM), exigência da Política Nacional de Segurança de Barragens, instituída pela Lei Federal nº 12.334/2010, e deve acontecer na Zona de Auto Risco de Morte, termo cunhado por atingidas do Comitê Popular dos Atingidos pela Mineração em Itabira e Região para corretamente nomear e se referir a “Zona de Autossalvamento” (ZAS).
No mesmo dia do simulado, a Prefeitura Municipal de Itabira, por meio das redes sociais divulgou vídeo da coordenadora da Defesa Civil Municipal, Nilma Macieira, que anunciou “com grande satisfação, a melhoria na participação, no simulado onde as pessoas estão tendo entendimento de sua importância”. Com “treinamento da comunidade escolar” e no vídeo aparece a imagem de crianças com uniforme escolar em fila.
No dia seguinte, os jornais locais comentaram sobre o fato de que um percentual muito pequeno da população havia aderido ao simulado. O Diário de Itabira divulgou que cerca de 88,99% dos moradores não participaram, ou seja, apenas 11% da população das áreas afetadas por barragens participaram do simulado.
No dia 25 deste mês, o ex secretário municipal de Meio Ambiente, Denes Lott, divulgou artigo no portal Vila de Utopia, por meio do qual questiona de forma retórica “Por que ainda resistimos a simulados de emergência – o caso de Itabira”, e argumenta que seria a tentativa de “evitação experiencial” de “mau agouro”, baseando-se em Hayes et al. (1996). Uma “resistência emocional” que é preciso ceder ao necessário exercício de prevenção.
Uma espécie de pensamento mágico (Frazer, 1982), me indago, pelo qual a população cultivaria a crença, o pensamento, de que evitar a simulação teria o poder de influenciar eventos futuros.
O simulado foi anunciado pela imprensa, nas redes sociais e por meio de outdoors. E envolveu as três maiores barragens de Itabira, nessa ordem: Sistema Pontal, Itabiruçu e Conceição.
A barragem da Mina Córrego Feijão que se rompeu em Brumadinho em 2019, tinha 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos. Conforme dados da Agência Nacional de Mineração (ANM) de 2019, o Sistema Pontal abriga 220 milhões de metros cúbicos de rejeitos, a barragem do Itabiruçu abriga 222,8 milhões de metros cúbicos de rejeitos, e barragem de Conceição abriga 36 milhões de milhões de rejeitos de rejeito da mineradora da Vale S.A. A barragem de Brumadinho foi construída na década de 1970 como as três maiores barragens de Itabira.
O objetivo do simulado era replicar, sob alegação de “testar e aprimorar os protocolos de segurança, garantindo mais agilidade e preparo em situações de risco”, uma devastação socioambiental, como a ocorrida em Brumadinho em 2019, que ceifou 272 vidas humanas, incluindo dois bebês, de duas grávidas, atingiu 26 municípios e até hoje representa um dos maiores desastres socioambientais e trabalhistas do Brasil, provocados por descaso planejado.
Descaso planejado (Parry Scott, 2009) é termo que reconhece que em projetos de desenvolvimento como a mineração, “tudo é cuidadosamente planejado e permanentemente negociado” até sua concretização, mas por sujeitos em posições desiguais, e “via de regra, mais cedo ou mais tarde as populações que se encontram no caminho dos projetos terão que ceder a eles, por mais que consigam impor certas condições para, como dizem os planejadores ‘mitigarem’ os impactos.” (Scott, P. 2009, p.10 apud Ferreira, 2015, p.94-95).
O episódio do simulado de emergência realizado no dia 23 de abril não pode ser compreendido apenas como um exercício técnico de prevenção, pois é também um acontecimento profundamente simbólico, atravessado por assimetrias de poder, disputas de sentido, profusão de narrativas e formas de resistência silenciosa.
A ação, embora justificada pela Política Nacional de Segurança de Barragens insere-se num contexto profundamente marcado por assimetria de poder entre a população e a mineradora, especialmente após os crimes socioambientais de Mariana (2015) e Brumadinho (2019).
A tentativa de institucionalizar o risco e simular a catástrofe sob o eufemismo de “Plano de Ação de Emergência” ignora a dimensão subjetiva, histórica e afetiva da experiência das atingidas e dos atingidos.
Como nomeiam com precisão as atingidas do Comitê Popular dos Atingidos pela Mineração, as ZAS são Zona de Auto Risco de Morte, e não de “autossalvamento” – termo que transfere a responsabilidade da salvação aos próprios moradores, deslocando do Estado e das empresas, da Vale S.A., sua responsabilidade objetiva e histórica.
Tachar a recusa em participar do simulado como “resistência emotiva” é uma leitura patologizante e psicologizante da resistência silenciosa e de sua dimensão política.
Como propõe James Scott (2002), a recusa a participar de uma encenação estatal do desastre pode ser lida como uma forma de resistência cotidiana e silenciosa, daquelas e daqueles que não se organizam em grandes protestos ou greves, mas que expressam um dissenso coletivo pela omissão, pela ausência, pela recusa em performar a obediência.
A recusa em participar do simulado não significa ignorância ou superstição, mas um discurso oculto tecido no cotidiano das relações desiguais entre os moradores e a Vale, uma recusa a participar do teatro da salvação encenado por quem historicamente produziu a destruição.
O uso de crianças com uniforme escolar como parte da encenação — com imagens divulgadas pela Defesa Civil Municipal nas redes sociais — amplia a gravidade do ocorrido.
A participação infantil pode ser lida como um esforço de naturalização do risco e da convivência com a catástrofe, impondo desde cedo a pedagogia do medo e da submissão. Não se trata, portanto, de um exercício neutro de segurança, mas de uma estratégia de normalização simbólica da violação, em que o perigo é pedagogizado e transformado em “parte da rotina”.
A enorme discrepância entre a participação esperada e a real escancara o abismo entre o discurso da prevenção e a vivência dos sujeitos atingidos.
O discurso hegemônico inverteu os fatos históricos e inscreveu no imaginário social que a Itabira cresceu por sobre as áreas de mineração, quando na realidade a mineração vem crescendo, a comando da Vale S.A., há 83 anos, sobre a cidade.
A territorialização da mineração em Itabira faz do nosso território uma mera plataforma territorial econômica, produtora de commodities, máquina de exclusão, esterilização de excedente social, depredação cultural, desfiliação, degradação ambiental e predação de pessoas e espaços geográficos.
Assim, a recusa da população em participar do simulado – longe de ser um comportamento irracional ou mágico – deve ser lida como parte de um campo de resistência simbólica e política, no qual o silêncio, a ausência e a recusa se tornam modos possíveis de afirmação de uma dignidade constantemente negada.
É o que James Scott (2004) nomeia como arma dos fracos: a política feita nos subterrâneos do poder, nos bastidores das encenações públicas, nas brechas da obediência forçada.
Ao insistir em performar a sua ausência, a população de Itabira denuncia a ficção do salvamento e afirma, mesmo sem palavras, que a vida não pode ser ensaiada entre sirenes, outdoors e comunicados de marketing. Sua recusa é resistência! Sua ausência é denúncia!
O fato é que, a Vale é obrigada por lei federal a realizar esses simulados. Como também é fato que a Vale é obrigada pela lei estadual nº 23.291/2019, a Lei Mar de Lama Nunca Mais, a desativar as barragens construídas pelo método de alteamento a montante.
A lei também proíbe a existência de pessoas na ZAS, devidamente rebatizada de Zona de Auto Risco de Morte, porque são regiões onde não há tempo suficiente para evacuação de pessoas em caso de rompimento.
A lei obriga, portanto, a mineradora Vale S.A. a realizar a descaracterização das barragens, ou seja, o descomissionamento das mesmas, e a arcar com os custos de Assessoria Técnica Independente para negociação do reassentamento das atingidas e dos atingidos.
A Lei Mar de Lama Nunca Mais obrigou a descaracterização das barragens até fevereiro de 2022, mas por articulação política, jurídica, e quiçá, econômica, a Vale conseguiu estender o prazo até 2028.
*Ana Gabriela Chaves Ferreira é mãe atípica, atingida e ativista. Licenciada e bacharela em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Educadora, coordenadora pedagógica e pesquisadora sobre conflitos socioambientais e educação inclusiva.
Referências
FERREIRA, Ana Gabriela Chaves. Mineração em serra tanto bate até que seca: a presença da Vale em Itabira para além do desenvolvimento dos conflitos ambientais. 2015. Monografia (Graduação em Ciências Sociais) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015.
FRAZER, James George. O Ramo de Ouro. Tradução de Walter Dutra. São Paulo: Guanabara, 1982.
SCOTT, James C. Formas cotidianas da resistência camponesa. In: ARAÚJO, R. E.; NEVES, D. C. (org.). Raízes e rumos da questão agrária. São Paulo: Editora UNESP, 2002. p. 25–44.
SCOTT, James C. Los dominados y el arte de la resistencia: discursos ocultos. 5. ed. México: Era, 2004.
SCOTT, Parry. Negociações e resistências persistentes: a barragem de Itaparica num contexto de descaso planejado. Recife: EDUFPE, 2009.
Prezado Carlos Cruz.
Parabéns pelo artigo da Ana Gabriela Chaves Ferreira na Vila de Utopia.
Inacreditável que tenha havido apenas 11% de participação da população na simulação de risco realizada no dia 23 de abril em Itabira, por causa de eventual perigo em caso de rompimento das Barragens de Conceição, Itabiriçu e Pontal, na zona de risco de morte.
Não sei se aquele presídio que fica nessa zona e foi esvaziado por isso, se foi reocupado e neste caso como foi feita a simulação e se a Barragem do Rio do Peixe está inclusa.
Onze por cento tanto pode ser o silêncio das vítimas inocentes, que já se acostumaram com o risco e não acreditam nele, igual no avião com a equipe de comissários mostrando como agir e ninguém presta atenção e na hora do desastre não sabe nada.
Ou, talvez seja por causa da campanha feita para esconde-esconder o perigo.
Eu achei que no silêncio dos inocentes houvesse um duplo sentido e não foi disparado o alarme e a simulação ocorreu em silêncio, mas entendo que na simulação de risco a brigada deve informar, disparar avisos e alarmes, com obrigação de evacuação de 100% dos moradores cadastrados na área, inclusive pessoas com restrições de mobilidade, por exemplo cadeirantes.
Essa matéria precisa ser aprofundada e merece repercussão.
Em vez de silêncio é caso de desinformação oficial e alienação da população do perigo.
Um forte abraço, Aleixo Caetano de Moraes
A mineradora Vale existe pelo minério, a população vive a espera de possivel morte a qualquer hora. É o capitalismo atraso e ignorante exercendo a política do medo. Quando ficaremos livre desta praga?
Ana Gabriela esclareceu a verdade.