Que rolem as pedras
Marina Procópio de Oliveira*
Desde que fui agraciada com o prazer de ver meus textos postados na revista eletrônica Vila de Utopia tenho postado, pelo menos uma vez por semana, geralmente na sexta-feira, um poema ou uma crônica. E talvez vocês tenham percebido que nesta semana eu me atrasei e a postagem, que deveria ter saído ontem, provavelmente sairá hoje ou amanhã.
É que fiquei enrolada. Não sabia como dizer o que queria dizer, porque o assunto aqui é trabalho e eu sei que tem uma montanha de gente que adora trabalhar.
E pra esses que adoram trabalhar, já vou logo avisando: por favor, parem de ler a crônica aqui, porque ela é escrita pra quem, como eu, huuum, não é muito chegado ao labor nosso de cada dia.
Como não gosto de trabalhar, mesmo trabalhando com o que eu gosto (o que é um estranho paradoxo), acabo enrolando também o que não poderia, de forma alguma enrolar.
Afinal, não é de hoje que venho tentando encontrar uma dúzia de leitores (um mínimo que seja) e, logo agora, quando eles estão aparecendo, para minha enorme felicidade, sou tomada, novamente, por esse meu velho hábito de ficar pensando demais e escrevendo de menos.
Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, como diria meu amantíssimo escritor Rubem Fonseca, de quem eu roubei esse pensamento perfeito.
Pois é. Então vamos deixar de rolo e iniciar essa crônica, que trata, no final das contas, de rolar as pedras.
É que outro dia, chegando em casa depois de mais um estafante dia de trabalho, com dores por todo o corpo e uma falta de saco danada para repetir tudo no dia seguinte, deitei-me no sofá da sala, liguei a TV e literalmente apaguei, minutos depois.
Meu cérebro, que é mestre em decodificações, apresentou-me o seguinte sonho: eu era obrigada a aparar, todas as noites, a barba de um homem imobilizado, mas ela voltava a crescer no dia seguinte.
Ainda assim, eu cumpria minha missão religiosamente, superando todos os obstáculos, sem jamais desistir. Por minha diligência, nos minutos finais do sonho fui carregada nos ombros como a grande vencedora desses, digamos, jogos olímpicos do absurdo.
A interpretação dessas imagens, com todos os seus meandros, deixo a cargo de um especialista (mas, por favor, não se pronuncie aqui, pode ser muito constrangedor!). O fato é que, tão-logo desperta, veio-me à memória o mito de Sísifo, lendário rei de Corinto, na antiga Grécia.
Sísifo, em grossas linhas, ousou desafiar os deuses por três vezes. A primeira porque revelou a Ásopo, o deus-rio, o paradeiro de sua filha, raptada por Zeus.
A segunda, quando prendeu a deusa-morte, Tânatos, em sua cidadela e, com isso, interrompeu o ciclo da vida e morte.
E a terceira, ao retornar ao mundo dos vivos, sob o pretexto de enterrar seu corpo insepulto, quando, ao invés de proceder aos ritos fúnebres, preferiu permanecer vivinho e fugir com sua esposa para longe da influência dos deuses do Olimpo.
Só foi levado definitivamente ao Hades, o reino dos mortos, em sua velhice.
No Hades, por sua desobediência reiterada aos deuses, Sísifo foi condenado a cumprir a seguinte pena: deveria rolar, para toda a eternidade e sem cessar, uma enorme pedra de mármore até o alto de uma montanha íngreme; chegando ao cume, a pedra rolava novamente para o sopé da montanha e era ele obrigado, de imediato, a subi-la outra vez ao cume, num trabalho inútil e sem descanso.
O mito – como todo mito – tem caráter simbólico: assim como Sísifo, somos seres condenados. Não sei o que fizemos contra os deuses, se a culpa foi de Eva e sua maçã, se pagamos ainda pela ousadia do rei de Corinto ou se pela ousadia do nosso cérebro, que nos transformou em seres conscientes (mas que não se desenvolveu o bastante para nos tornar oniscientes), mas o fato é que a vida, com tudo em seu lugar, como diria Bandeira, é isso: rolar a pedra ladeira acima só pra ver ela rolar ladeira abaixo.
Varremos ruas intermináveis, preparamos infinitamente o alimento, esfregamos quilômetros da mesma roupa suja; o padeiro é obrigado a todo dia enrolar a massa para fazer o pão, planta-se sempre a mesma batata para colher o mesmo nabo, o lixo de hoje é igual ao de ontem, a fome saciada agora volta a arder no dia seguinte.
Trabalhamos diuturnamente um trabalho sempre igual, compramos a casa (para quem tem sorte), temos os filhos (para quem tem coragem), o sol nasce e se põe, e lá estamos nós, rolando a pedra ladeira acima de novo, com pequenas variações sobre o mesmo tema.
Para Camus, que analisou o Mito de Sísifo, só superamos a miséria de nossa situação quando nos assenhoreamos da absurdidade da condição humana. Ou, por outro modo, quando aceitamos, sem possibilidade de fugas, a falta de sentido de nossas vidas e, por isso mesmo, nos tornamos senhores dos nossos dias, sem condicioná-los a qualquer destinação superior.
Não sei se Camus estava certo.
Na verdade, eu acho até que assenhorear-se do absurdo de nossa condição nos salva quando estamos num beco sem saída, mas pra mim, já que não podemos voltar ao nosso estado de inconsciência, o melhor mesmo é a fuga para a irrealidade cotidiana, no bom sentido.
Por exemplo, já pensou se na próxima encarnação – sim, porque não viajar na próxima encarnação, se tudo é mesmo absurdo – o homem já tiver se transformado, por meio de suas incríveis invenções, em um ser fotossintético?
Seria o fim do trabalho sem descanso e a pedra, com certeza, ficaria muito mais leve, alguma coisa assim com uma pedrinha de isopor, que a gente empurrava para cima da montanha com um sopro e que, se deus quisesse, demorava a voltar para o sopé, agarrada em alguma moitinha recém-nascida ou numa saliência insuspeitada pelos deuses.
É lógico que aí ia ter o problema da extinção do sol, mas até lá muita água teria rolado por debaixo da ponte e a gente tem que se concentrar em um problema de cada vez.
Eu, como garantia, operarei essa transformação em mim mesma nesta encarnação, assim que me aposentar, se é que vou estar viva até lá: minha intenção é ficar a beira-mar, só a ver navios, me alimentando de luz … e da minha aposentadoria, se o governo não me usurpar o benefício.
Enquanto esse tempo não chega, vou me exercitando nos fins-de-semana e nos feriados prolongados, em longas tardes de rien a faire, olhando o céu azul e lendo belíssimos livros, frutos da mais pura nostalgia humana.
Aliás, sem a melancolia e a nostalgia próprias da nossa condição, Dostoievski e Kafka, que Camus tanto prezava, jamais nos teriam presenteado com suas obras-primas e nunca haveríamos compreendido a poesia, que só faz sentido diante da falta de sentido.
O que eu quero dizer com isso tudo é que, pra mim, a única e grande adversidade da condição humana reside na obrigatoriedade do trabalho. Sem isso, acho que daríamos conta, com muito mais bom humor, da nossa precariedade.
A mim, por exemplo, só me incomodam tais questões filosóficas quando estou trabalhando muito – e também se o dia ficar nublado ou se meu estômago estiver doendo.
Portanto, pra ser sincera, acho que Camus errou, ao partir do pressuposto de que o homem não se dá conta de sua condição absurda. Acho que ele se dá conta, e muito bem: por isso, inventou a cerveja, as férias, a anestesia e o petit gateau.
E também um pedido de condescendência, quando às vezes a gente opta por ver um filmezinho ao invés de dedicar nossas preciosas horas de ócio ao enredo de uma estória.
*Marina Procópio de Oliveira é poeta e escritora itabirana. Mora em Belo Horizonte
Delícia de texto! Um brinde ao rien a faire!