Prosa Musical com o Cometa revela a efervescência cultural de uma conjuntura histórica no fim da ditadura militar

Livraria Quarup, primeira redação do Cometa em Itabira (Fotos: Nandim). No destaque, Mengueles entrevista a turma do jornal (Foto: Cris Guerra)

Produto de uma série de circunstâncias, dentre elas a efervescência cultural e política que vivia a capital mineira na metade da década de 1970, principalmente com o forte movimento estudantil que saia às ruas pelo fim da ditadura militar, como também em decorrência do clima cultural que vivia Itabira com os festivais de inverno, nascia em novembro de 1979 o jornal alternativo O Cometa Itabirano.

Para falar deste acontecimento editorial e cultural, o professor, músico e produtor Júlio César “Mengueles” Batista Mattos entrevistou, para o programa Prosa Musical, o professor Paulo Assuero “Lelinho” Vaz Sampaio e o artista plástico, chargista, cartunista e escultor Luiz Eugênio “Genin” Quintão Guerra, fundadores do hebdomadário.

A entrevista contou também com a participação de José Norberto “Bitinho” de Jesus, primeiro publicitário do jornal, produtor do maior festival de rock (UAI-Um Acontecimento em Itabira), realizado nos anos 80, e do médico veterinário Roberto Quintão Guerra, colaborador do jornal, ex-vocalista da banda Sobrinhos do Padre, também parte e produto dessa mesma efervescência cultural.

Prólogo

Redação do jornal em 1983, na praça da Saúde, número 8

“Éramos jovens inquietos, participantes de acontecimentos culturais importantes, como os movimentos estudantis e cineclubista, numa conjuntura histórica muito importante para o país”, contextualiza na entrevista Lelinho Assuero.

Segundo ele, foi por meio do cineclube Lima Barreto, e posteriormente, com o jornal O Cometa, que esses mesmos então jovens inquietos trouxeram para Itabira essa mesma “modernidade” que florescia em Belo Horizonte e no país.

Conforme recorda o produtor cultural José Norberto, o cineclube foi o primeiro coletivo cultural de Itabira. “Os filmes (clássicos nacionais e estrangeiros) eram exibidos em praças no Pará, mas também na Vila Amélia e no João XXIII.” O bairro era tido como violento, mas não foi isso que a irrequieta turma de jovens encontrou por lá: uma comunidade receptiva, que participava de mutirões promovidos pela igreja católica – e muito politizada.

Show da banda Pouso Alto (Skank) nos dez anos do jornal (Foto: Patrícia Lott)

“Quando decidimos criar o cineclube, procuramos dona Myriam Brandão na Prefeitura, que nos emprestou o projetor. Em carta Drummond elogiou a escolha do nome de Lima Barreto para o cineclube, que ele considerava um grande cineasta”, recorda Lelinho Assuero,

Pode-se dizer que essa carta à irrequieta turma tenha sido o primeiro elo de uma grande parceria que o jornal O Cometa firmou com o poeta Carlos Drummond de Andrade. “Muita gente achava que Drummond não ligava para Itabira e no jornal mostramos o quanto essas pessoas estavam enganadas”, conta Genin.

Desconstrução

A turma do jornal com o poeta em 14 de fevereiro de 1981 (Foto: Humberto Martins)

Drummond não só não abandonou Itabira como, por muitos anos, lutou praticamente sozinho, tendo ao lado o seu fiel escudeiro José Hindemburgo Gonçalves, advogado e tributarista itabirano, pelos direitos econômicos, sociais e históricos de Itabira frente a então estatal Companhia Valle do Rio Doce (CVRD).

Para Lelinho, essa ranzinzice de itabiranos contra o poeta foi parte de uma estratégia muito bem urdida e colocada em prática para desconstruir s imagem do poeta em sua cidade natal, como se ele fosse contra o progresso trazido pela mineração em larga escala.

“A Vale quando chegou a Itabira, em 1942, precisava ter o controle social e para isso era importante apagar a memória histórica da cidade”, contextualiza o professor Paulo Assuero “Lelinho” Vaz Sampaio.

“Drummond significava uma pedra no caminho nessa estratégia da Vale, sempre a lembrar da dívida histórica”, diz Lelinho, lembrando que o poeta, com as suas crônicas, fazia questão de não deixar que se esquecesse de lembrar que a dívida histórica precisava ser paga, o que ainda não aconteceu.

Poemas inéditos

Edson Ricardo, autor do projeto gráfico do Cometa, no I Salão de Humor, em 1982

O jornal O Cometa trouxe todas essas questões ainda prementes na vida da cidade para as suas páginas. A badalação ao poeta, não um culto personalíssimo, mas de divulgação de sua obra muitas vezes profética, como em O Maior Trem do Mundo e Lira Itabirana, poemas até então inéditos, publicados pela primeira vez pelo jornal, era tanta que o próprio Drummond chegou a “reclamar” em carta à redação.

“Às vezes fico achando que sou uma invenção de vocês. Que eu não existiria se o Cometa não badalasse a minha existência, dando-me verossimilhança, forma, credibilidade, tantas referências, carinhos (num jornal nada carinhoso), lembranças, imagens… Serei o alvo de tudo isso? O Cometa criou um personagem e insuflou-lhe vida? Meu Deus, acabo acreditando em mim mesmo, por obra e graça (ou molecagem) de vocês. É isso aí. Jamais poderia esperar uma simpatia tão dadivosa como essa que recebo do bravo e irreverente jornal que representa o espírito novo, crítico, vigilante e renovador de Itabira. Muito e muito obrigado, pessoal. O antiquíssimo itabirano sente-se rejuvenescer pela mágica de vocês. A cada um da turma o abraço feliz de Carlos Drummond de Andrade.”

Inquietações

O ex-deputado Cássio Gonçalves, Tancredo Neves, Carlos Cruz, e Lúcio Sampaio, em 1982

Uma das marcas do jornal era a irreverência, ao mesmo tempo em que tratava dos assuntos “sérios” em reportagens investigativas. Essas revelavam realidades que poderes políticos e econômicos constituídos não queriam que tornassem públicas – e que ao saírem impressas no jornal se espalhavam para muito além das fronteiras provincianas do município, na época, com pouco mais de 70 mil habitantes.

Como fruto também dessa irreverência foi que surgiu a banda Sobrinhos do Padre, liderada pelo médico veterinário Roberto Quintão Guerra que, juntamente com o seu irmão Renato Guerra, foram os seus vocalistas.

Com padre Lopão na sacada da casa paroquial

“A Cabral Sreet (designação de um ponto de encontro de jovens na década de 1970, no antigo armazém de Juquinha Cabral, na esquina da rua Alfredo Sampaio com Trajano Procópio, no bairro Pará) foi também uma grande influência. Nessa esquina, muitas músicas foram compostas, como Sotero, de Luiz Carlos Paiva”, recorda Roberto Guerra.

“Lúcio (Sampaio, ex-editor e um dos fundadores do jornal) compôs a letra de Papa Hóstia, que ficou famosa em Itabira com os Sobrinhos do Padre”, emenda Genin na entrevista a Júlio Mengueles, no Prosa Musical.

Mais detalhes dessa entrevista, com as revelações revisitadas nas reportagens, charges e entrevistas publicadas ao longo da existência do jornal o Cometa, acesse aqui  https://www.youtube.com/watch?time_continue=246&v=08MDD-0k_7c.

Epílogo

Lúcio Sampaio entrevista Hermeto Pascoal na redação do Cometa

“Eu sei que o jornal começou a circular em 1979, mas não sei quando terminou. O jornal acabou?”, pergunta Genin, mesmo sabendo que essa resposta é difícil de ser respondida. O certo é que o jornal virou patrimônio imaterial, histórico e cultural de Itabira.

Os 40 anos do seu lançamento serão lembrados com a exposição A Liberdade de Expressão na trajetória do jornal O Cometa Itabirano, com abertura no dia 21, às 18h, na galeria da Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade.

A exposição tem curadoria do artista Genin. Não deixe de visitar para conhecer um pouco mais dessa maluquice itabirana que foi o jornal O Cometa Itabirano.

 

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