Poemeto Negro

Desenho de Cornélio Penna

Esta página inédita é do pintor Cornélio Penna, que alguns quadros expostos nos últimos salões de novos consagraram, numa assombrosa revelação, como o mais extraordinário iluminista do Brasil. Ele aí nos aparece com a mesma cor suntuosa e a mesma poesia alta e apocalíptica de suas telas.

Por Cornélio Penna

O manto roxo, caindo em dobras imperiais, envolve em sua ampla riqueza a lassidão de meu corpo e a melancolia perturbada de meus pensamentos, formando na terra uma grande rosácea palpitante.

Alguém, afastando-a com o pé calçado em ouro, e meneando vagarosamente as suas asas negras, diz-me baixinho ao ouvido:

– Acorda de tuas preocupações e vem comigo. Sinto-me então arrebatado, e deslizamos longo tempo pelo espaço, sem que eu possa abrir os olhos, tal o medo que de mim se apodera. Percebo, através das pálpebras, que me bate no rosto uma luz esverdeada, e com esforço, olho: oh, estende-se por toda parte a amplidão de um céu espantoso, onde giram lentamente nebulosas que arfam e se revolvem como grandes nuvens batidas pelo vento. Vogam em ondas luminosas, lançando-se na vastidão sem fim, iluminadas e resplandecentes, mas sempre revoltas e arquejantes.

Contemplo a luta incompreensível que se trava em cada uma dessas massas lívidas, e a sua angustia silenciosa apodera-se pouco a pouco, de meu espírito.

– Leva-me daqui, leva-me daqui, murmuro, ou então que minha alma se desvaneça, que minha inteligência se desfaça, e minha unidade desapareça para sempre…

A minha voz perde-se sem resposta…

Estou só.

Nada se ouve, e a visão continua: diante de minha vista – os vagos mundos, em seu ritmo vertiginoso.

Sinto-me preso a mim mesmo, e o desespero sobre-humano dessa prisão faz-me sofrer tanto que, as mãos em garra, tento despedaçar o meu seio, mas apenas consigo rasgar em longas tiras a seda que me envolve.

Quero fugir de meus olhos, e só posso blasfemar…

Alguém roçando-me com suas asas negras, afasta com o pé calçado em ouro o manto roxo, que cai a meu redor como uma mancha de sangue coagulado, e diz-me com surdo sarcasmo:

– A verdade é demasiado grande para os teus olhos… Reúne os teus restos dispersos e volta…

[Revista Souza Cruz (RJ), dezembro de 1925. BN-Rio]

[D. Quixote (RJ), 10/3/1926. BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]

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