Poema de Itabira
Heitor Villa-Lobos (1887-1959), em 7/9/1940, regendo coro com 40 mil estudantes, na Colina Histórica, apelido do Estádio do Vasco da Gama – Acervo: Vasco da Gama
Sobre a grande festa de 7 de setembro de 1940 no Rio, quando o maestro Heitor Villa-Lobos, regeu 40 mil estudantes cantando a natureza brasileira, no estádio da Colina Histórica, o cronista Drummond registrou:
“A multidão em torno vivia uma emoção brasileira e cósmica, estávamos tão unidos uns aos outros, tão participantes e ao mesmo tempo tão individualizados e ricos de nós mesmos, na plenitude da nossa capacidade sensorial, era tão belo e esmagador que, para muitos, não havia outro jeito senão chorar; chorar de pura alegria.”
“Através da cortina de lágrimas, desenhava-se a figura nevoenta do maestro, que captara a essência musical do nosso povo”. (Cristina Silveira, pela transcrição)
Imagens da Glória. Cortejo
Carlos Drummond de Andrade
“A cidade do Rio de janeiro, que vai fazer 400 anos de alegria e dureza, e está cada vez mais lépida, chegou primeiro e disse:
– “Salve, meu filho Heitor, que fugiste de casa aos 16 anos para viver com os chorões; e fizeste o ramalhete de minhas modinhas mais melomelosas, infundindo-lhes sopro de grande música”;
e os chorões vieram chegando da Cidade Nova, no orvalho da madrugada, e cada capadócio se arredondava em abraço para o músico de melenas e enorme charuto;
e a melodia se ouviu, enchendo o céu carioca, a alma do povo e a dos eruditos de Ipanema: “Rasga Coração”;
E a marquesa de Santos, toda emperiquitada, varrendo o chão com a saia perfumada a capim cheiroso, a boca sabendo a cravo, reclamou:
– “Quero ouvir, quero ouvir o meu lundu, composto por meu afilhado Heitor, que é louco e por isso mesmo decifra a linguagem do amor”;
e vieram os remeiros do rio S. Francisco, trazendo a voz da terra, e surda e confundida com as folhas;
e espalhou-se no ar uma pitada de “jaz”;
e os instrumentos mais antigos e os atuais vieram sozinhos – o caracaxá, agreste, mas enternecido, marcando ritmo, a cabaça, o oficleide, o bandolim;
e o tamborim, o pistom, o cavaquinho, a harpa, o majestoso caxambu dos moçambiques, a celesta, o desaparecido camisão qual mais apurado, e agradecido e comemorativo;
e a flauta veio dialogando de amor com a clarineta, na doçura do “Choro n. 2”, como observou a um lado Eurico Nogueira França, que tudo ouvia e aprovava;
e Itabira, aonde o músico nunca pôs os pés, surgia também entre suas minas massacradas, sentindo-se intuída e explicada na dramática tessitura de canto e orquestra do seu “Poema”;
e o musical fantasma do Cinema Odeon, na esquina de Avenida com a rua Sete, entre as sombras de Valdemar Psilander e Chica Bertini, curvou-se diante do vulto de seu antigo violonista, que de repente furava o telhado e se projetava na pauta das nuvens;
e os poetas sempre à procura de palavras novas forjadas com elementos velhos, vieram agradecer o oratório de “Vidapura” e o “Rudepoema”;
e quarenta mil meninos e meninas formando uma voz única no estádio do Vasco – é o maior! – ao gesto brusco daquele que lhes ensinou a comunhão do canto;
e a gurizada pelo Brasil a dentro, que ficará cantando de roda na calçada as eternas cantigas que ele afeiçoou e fixou – capelinha de melão; o cravo brigou com a rosa, laranjeira pequenina, meu pai amarrou meus olhos;
ou que adormecera ao acalanto pernambucano de João Cambuete;
e a gatinha parda, e os Escravos de Jó, todos reverentes;
e vieram os macumbeiros com seus pontos e esquinas mágicas, seu Xangô e sua marola do mar, marolando;
E Mário de Andrade, sorrindo na suéter arlequinal, deliciado:
– “Mas v. é um monstro, quem que pode com v.;
gênio é homem que nem nós mesmos, a diferença é que ele vai sempre além do que pensava fazer;
e sua musicalidade é uma coisa louca, às vezes v. nos embriaga com o simples e puro movimento sonoro de conjunto, para lá do ritmo;
e veio o anônimo José – e agora? – botado numa quadrilha caipira;
enquanto a embolada do maestro intimava freneticamente: “junta povo pra brincar junta povo pra brincar junta povo pra brincar”;
…e vieram as sinfônicas de Boston, São Francisco, Nova York, Paris, Viena, Berlim, Amisterdão, sob o fascínio da batuta malcriada e amazônica;
e vieram homens e mulheres do Brasil que, pela primeira vez ouviram, regidas por ele, a Missa Solene de Beethoven, a Missa do Papa Marcelo de Palestrina, a Missa em Si Bemol de Bach;
aí, Bach (toda música flui dele, e a que não flui é ruido apenas), veio o próprio Bach em pessoa, rompendo o velório sagrado, chegou-se para perto do músico, tocou-lhe no ombro e agradeceu-lhe as Baquianas Brasileiras, que o identificaram com o populário do nordeste e a melodia errante do mundo:
e veio Deus:
“Glória a meu filho de estimação Heitor Villa-Lobos, que completa 70 anos e espalhou minha música à face da Terra”.
[Correio da Manhã (Rio), 12/3/1957. Hemeroteca BN-Rio]
muito legal, um achado.